sábado, 25 de outubro de 2014

Estação na Mudança, por Cleber Lambert

Em um texto filosófico requintado, Cleber Lambert polemiza sobre a atual situação do Brasil, e do pensamento no Brasil: Uma inquietação filosófica potente e refinada sobre tempos inquietantes. Material de primeira para o Descurvo:
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Um modo de fazer apelo à filosofia por vir no Brasil, que de modo algum, de um ponto de vista geofilosófico, pode se confundir com uma filosofia do Brasil, foi instaurado por Bento Prado Jr, em diversos momentos. Por exemplo, quando ele colocava o ato de pensar imediatamente no prolongamento de uma partida de futebol, com um drible ou um gol marcado num domingo, ou então com uma poesia, com uma passagem de um romance, ou ainda a partir do encontro do futebol com o literatura, com o teatro: “Que há de mais curioso do que esse cruzamento entre teatro e futebol (...)? Mas, na verdade, o texto de Decio de Almeida Prado serve-me aqui apenas de pretexto para esboçar algo como um prolongamento de suas observações: tentarei continuar a jogada com a bola que ele levantou, contando apenas com meu precário domínio dos "fundamentos" (como diz a crônica esportiva) dessa arte. O que me interessa é apresentar uma nova figura dessa oposição literária ou, mais precisamente, entre duas formas de relação entre literatura e futebol, que se desenha no Brasil três ou quatro décadas depois daquela descrita em "Latejando com o Futebol"” (Bento Prado Jr, Literatura e o mistério da bola).
Essa performance filosófica, em Bento Prado Jr, constituía um verdadeiro modo de fazer com que pensamento e vida se comunicassem imediatamente, prolongando-se mutuamente. A mesma constatação que Bento faz adiante em relação a outro encontro da literatura com o futebol, ou “desencontro entre estilo elevado e assunto cotidiano”, tal como o vemos em Carlos Drummond de Andrade e em João Cabral de Melo Neto, qual seja, “pertencia já ao passado o tempo em que era necessário mobilizar estrategicamente a experiência cotidiana para enriquecer a poesia contra o espírito poético exaurido e empobrecido por sua exclusiva consagração a temas elevados, distantes e passados, ou pela obsessão cátara com a pureza da última flor do Lácio”, essa constatação é simultaneamente a essência mesmo do que pratica Bento sob o nome de filosofia, essa performance que já não pode mais traçar uma linha especulativa separando o campo do filosófico e do não-filosófico e que, ao mesmo tempo, mostra rigorosamente em que o não-filosófico pode servir de disparação para o que há de mais filosófico.
É claramente o prolongamento, por uma performance filosófica indisciplinada, do apelo de Oswald de Andrade a uma filosofia antropófaga para além de toda filosofia messiânica assentada sobre o problema do Ser ou da Consciência, da Substância ou do Sujeito enquanto obssessão cátara com a pureza em sua forma propriamente especulativa. Assim, Bento, a exemplo daquele outro, o Espinosa, atacava toda filosofia que nos separa da vida, que não faz da “Verdade” o efeito de um esforço sempre renovado do pensamento, pelo qual nos tornamos dignos de viver, pelo encontro da potência de pensar com as forças exteriores que fazem do imprevisível o mais profundo impulso vital que força o pensamento a sair de sua fadiga habitual e a pensar. Todo pensamento que nos aparta da vida constitui, para Bento, um “convite à falsificação”. Antes do Ser e da Consciência, como princípios aos quais chegamos apenas através da especulação como movimento abstrato, há a performance pela qual pensamento e vida se comunicam imediatamente, tornando possível um movimento efetivo, um bloco de pensamento e vida já tornados indiscerníveis. Não é o que se insinua aos olhos de Bento no encontro da literatura e do futebol, através das metáforas que se multiplicam nos poemas de João Cabral ou nas pernas de Ademir da Guia? Assim, a conclusão de Bento, segundo a qual “com João Cabral, a assimilação literária do futebol deixou de ser mera retórica ou simples provocação. Tornou-se, finalmente, assunto real para o conhecimento literário do Mundo”. É preciso ver nela que a assimilação filosófica desse encontro/desencontro não serve de simples metáfora, mas de material para se pensar o Mundo em seu devir.
Eventos da vida política podem igualmente fazer apelo a um pensamento, jogam igualmente com essa linha que alhures separa o campo da filosofia e da não-filosofia. Um desses eventos na contemporaneidade faz referência, no nosso entender, ao problema metafísico por excelência, ao menos de uma certa metafísica dita ocidental, a saber, aquela da relação entre o Mesmo e o Diferente. O evento ao qual nos referimos se passa, paradoxalmente, no seio da máquina estatal, através de diversas políticas sociais que, nos últimos 12 anos, fizeram dos representados da democracia representativa brasileira uma "classe inominável" ou "classe sem nome", segundo a expressão de Hugo Albuquerque, como se a identidade nacional fosse subvertida lá mesmo de onde ela jorra como efeito da máquina de Poder: para além da oposição entre uma unidade, homogênea, abstrata, como determinação formal do ser brasileiro, e o diverso, heterogêneo, concreto, como matéria indeterminada de uma massa humana, que produzia no Brasil justamente 2 brasis, o dos brasileiros inclusos segundo uma forma majoritária (cidadão de classe média, branco, com ensino superior, cristão, habitante de grande cidade, etc.) e aquele de uma massa de pobres e miseráveis em dispersão, impossível de incluir, invisibilizados nos sertões, favelas e florestas; para além desse esquema, deparamo-nos com uma estranha unidade que se diz da multiplicidade, um devir-brasil que é devir-todo-mundo, uma nação que não remete a um princípio unitário ideal, mas que é genética, ou seja, uma natividade que se engendra continuamente em ato, arrastando a própria máquina estatal brasileira e o todo do sistema democrático representativo, implicando-a num novo "antagonismo", de acordo com a sugestão de Sílvio Pedrosa, que é preciso investigar. Com efeito, o Brasil saiu de um estado no qual justamente ele estava, seguindo o sentido profundo desse verbo, no qual estanciava, repousando sobre um fundamento imóvel, fixo, estável, para se instalar e experimentar uma nova forma de estância, uma espécie de paradoxal estação na mudança: a democracia meramente representativa é devorada pelo voraz movimento efetivo de uma nação que é tanto mais nativa quanto mais ela se inventa. É do ponto de vista dessa estação que podemos contemplar com mais justeza o estado precedente.
Alguns filósofos, como Espinosa, ensinaram-nos que o medo é a estratégia do poder para a dominação de um povo. Pela multiplicação do medo no coração das pessoas, pela agitação em torno de uma inquietação, “o que vai acontecer?”, o poder se apresenta e oferece pontos de apoio fixos, estáticos, para os quais os corações temerosos se voltam na esperança de conseguir tutela e proteção, contra o caos ameaçador que borbulha lá fora. Essa segurança oferecida pelo poder consiste numa estação em que nada mudaria e nada de inquietante poderia sobrevir. Disciplina e/ou controle, trata-se sempre de uma tal estação. Um certo tipo de subjetividade preponderava no Brasil, justamente aquela que jazia nessa estação sem mudança que é uma miragem oferecida pelo poder aos corações que vivem com medo.
No entanto, quando Lula afirma em 2002 que a “esperança venceu o medo” e que sua eleição expressa o “reencontro do Brasil consigo mesmo”, um nova verdade era expressa decisivamente naquela afirmação, a decisão de eleger Lula significava um brasil-menor que assumia para si uma nova posição subjetiva, completamente diferente da precedente, instalando-se no seio da máquina estatal, incluindo-a num movimento que a ultrapassa e que desembocará nas manifestações de Junho de 2013 e nas eleições presidenciais de 2014. Se não hesitamos em ler aquelas primeiras, como explicar tanta incompreensão na mobilização pela candidatura Dilma neste segundo turno da eleição presidencial? Afirmar que as massas estão sendo enganadas sempre foi um falso problema em política. Trata-se de compreender aqui o arco longo da subjetividade que se expressa na eleição de Lula em 2002 e na mobilização atual pela reeleição de Dilma. Esse arco descreve justamente o movimento de saída daquela estação sem mudança e de instalação num movimento real que, como toda criação, é abertura à indeterminação.
Por isso mesmo, como não ter medo diante do risco do novo que deveria, desde então, ser criado literalmente “do nada”, já que não se tem mais os pontos de apoio fixos nos quais agarrar-se por medo, abdicando-se de criar, confortando-se com uma vida em que se miracula um “nada se passa”, “tudo continua igual”? Como assumir de se sustentar no ar sem nenhuma mão que impeça de cair, sem suporte algum que conduza, como um pássaro de que falamos justamente que ele voa livremente e faz um consigo mesmo em seu sobrevôo, à maneira de uma estação na mudança, de uma experiência que já não pressupõe nem sujeito, nem objeto, mas constitui uma individuação criadora, uma pura atividade ou corrente de vida, uma afirmação absoluta de si sem sujeito nem objeto? Construir, assim, uma vida que seja pura natividade, pura estância na mudança, num esforço atlético e contínuo de singularização, expõe aos riscos de se cair na fadiga que põe um objeto e um sujeito como formas dadas, aos quais essa vida seria atribuída e desfigurada, acomodando-se num estado (forma majoritária). Porém, como já dizia o filósofo H. Bergson, em A Evolução Criadora, as maiores recompensas dependem dos maiores riscos e não há criação de novidade no mundo sem esse gesto nobre de dizer sim à mudança, ao risco de mudar, ao abandono do estado que liga a consciência a um princípio a fim de esposar singularidades moventes ou forças estrangeiras que povoam um espaço aberto ou campo impessoal (devir-minoritário).
Ao longo dos últimos 12 anos, surgiu pouco a pouco uma percepção de que se vivia numa espécie de mudança, e de que a mudança comporta ela própria uma estação, uma verdadeira estação na mudança e, acompanhando essa percepção, tem-se o sentimento de que algo de si (do “si” meramente individual) já não cabe em si em sua forma previamente dada, de modo que ele escapa, foge, coincidindo com uma vida, no que esta significa uma mudança não somente continuada, mas contínua, ou seja, um esforço constante em estanciar nesse limiar de indeterminação pelo qual se dá a "imprevisível criação de novidade" (Bergson). Essa paisagem da vida política no Brasil não deixa de ressoar com a filosofia, ou mais radicalmente, com o próprio devir do pensamento. Quando a campanha de Dilma falou em 2010 em “seguir mudando” e afirma agora "mudar mais", ela reivindica uma posição subjetiva que faz problema. Com efeito, ela não supõe um princípio transcendente/condicionante. Ao contrário, ela faz uma só e única realidade com aquele estranho princípio imanente de que nos fala Deleuze a partir de Nietzsche, que se determina em cada caso com aquilo que ele determina, que se metamorfoseia com o condicionado. O que estava e está em jogo nessas expressões é uma verdadeira estância na mudança, essa nova posição subjetiva, instaurada e experimentada ao longo dos últimos 12 anos, em diferentes graus e de diferentes modos, nas diferentes classes sociais, doravante em pleno movimento de deslocamento seguindo o vetor "selvagem da classe sem nome" (Hugo Albuquerque). Não se trata nessa posição subjetiva paradoxal de afirmar um processo de mudança que levaria calmamente de um estado a outro. Essa sempre foi a imagem reservada às instituições numa democracia representativa. Ao contrário, trata-se de apreender o movimento efetivo de uma democracia real vivida como estação na mudança. É preciso pensar no profundo significado dessa estação em relação àquela outra que, pelo medo, nos fazia desejar tudo que pudesse ser fixo, imutável, ou não admitir mudança que não fosse de um ponto fixo a um outro, de um estado a um outro, como uma pessoa que, em meio a uma correnteza, pudesse se agarrar a pontos de apoio sucessivos que a conduzissem de uma margem a outra, sem que no final das contas, de fato, ela mudasse de lugar, pois de um lado ou de outro do Rio, ela estava protegida do fluxo que tudo mistura numa mesma e única corrente, levando o conjunto fluido alhures. Essa mudança era apenas um “movimento aparente”, uma passagem imóvel, pois, com efeito, “nada se passava” em nós, nada de novo em nós se criava e nos confortava olhar para a água e ainda ver no fluxo movente nossa própria imagem imóvel e nela nos reconhecermos, tal como é possível se reconhecer nas formas majoritárias que marcam socialmente a diferença relegada ao estado de maldição de pura mudança sem consistência. A imagem que fazemos das instituições também deve ser alterada de acordo com um ou outro ponto de vista na medida em que se trata de precisar o sentido daquilo que não se conserva a não ser na mudança.
Ora, é surpreendente que o filósofo Jean-Christophe Goddard, ao fazer uma bela reflexão sobre um outro filósofo, o alemão Fichte, em torno da questão que por gerações foi colocada a seu respeito, a saber, “Fichte, seria ele reacionário ou revolucionário?”, lembra-nos que a dicotomia do reacionário e do revolucionário, da conservação e da mudança, encontra-se completamente inserida num movimento aparente, numa espécie de pêndulo que realiza apenas uma passagem imóvel que nos leva de um polo fixo a um outro polo fixo e que integra a estratégia de codificação do social pela máquina do poder. Nesse sentido, o pêndulo do poder é uma espécie de estação propriamente sem mudança. Para ele, a inovação política de Fichte consistiu em pensar um meio de viver uma estação na mudança, ou melhor, Fichte foi o filósofo para quem uma vida consistia numa estância na mudança, mas à condição de que ela não sinta medo e escape ao pêndulo do poder que a ela oferece lugares estáveis para que nenhuma imprevisibilidade sobrevenha, para que precisamente “nada se passe”, seja se conservando no mesmo lugar, seja se transportando de um lugar fixo a um outro lugar fixo, através de uma mudança imóvel. A história da filosofia em seu conjunto é perpassada pelo problema da estância: “Ser” é uma questão de “estar”. Desde que o problema do princípio ou de uma unidade absoluta apenas varie numa estância entre uma “consciência” e o “Ser”, desde que o único percurso possível para o pensamento designe aquele que o conduz dessa consciência até um princípio Absoluto estático, imóvel, eterno, estamos, literalmente no sentido de uma estância sem mudança: todos os estratos que fixam a existência, o devir, a imanência, nos sucessivos sistemas filosóficos que fazem o mundo da representação. Entretanto, quando a representação é rompida pelo acontecimento, pela abertura de um espaço em que não há outra estância real a não ser aquela que nos faz permanecer no inacabamento, na interminabilidade, na transicionalidade que já não opõe o Uno ao múltiplo, o Idêntico ao diferente, o Homogêneo ao heterogêneo (a retomada incessante ao longo dos anos da Doutrina da Ciência é, nesse sentido, uma performance filosófica pela qual Fichte vive sua estância na mudança, uma transistência, como chamava Guattari a esse regime de subjetividade), passamos literalmente pela passagem: enfim, saímos do problema que relaciona um Sujeito a um Objeto, uma Consciência a um Princípio, o Múltiplo ao Uno, o Diverso ao Ser, o Condicionado à Condição, para nos instalarmos imediatamente no espaço intensivo do acontecimento, da diferença afirmada enquanto diferença, do que está em vias de se fazer. Essa estância na mudança abole tanto o Ser quanto a Consciência enquanto princípios ao passo que o verbo estar como índice de intensidade, como singularidade de um devir (hecceidade), faz valer sua contribuição para a filosofia. A estância na mudança se diz do acontecimento entendido como um se auto-pôr enquanto se auto-pondo, portanto, como uma pura atividade criadora.
Ora, já não era essa também a verdade antropófaga? O pensamento antropófago sempre nos lembrou que não há verdade como resultado da condução (por adequação, reflexão) do múltiplo ao Princípio imutável ou Absoluto. Tal sempre foi a maneira com que a especulação impediu a filosofia de pensar o novo. Oswald de Andrade fala em “tédio especulativo”, “estados tediosos”, “ideias” ou “paralisias” dos “chamados povos cultos”. Ao contrário, haveria uma unidade vital propriamente antropófaga: a vida é devoração e o pensamento é dinâmico, não cansava de dizer Oswald de Andrade. Unidade, portanto, instaurada incessantemente, tanto mais pura quanto mais híbrida ela se faz, que se diz da multiplicidade, não apenas heterogênea, mas heterogeneizante. Unidade que, não sendo posição subjetiva do colonizador (fundamento), nem colonizada (fundado), co-incide com o processo constante de descolonização do pensamento e da vida ou seu "afundamento". Subjetivação incessante, portanto, ambivalente. Somos todos canibais. Antes de descobrirem o Brasil, o Brasil já tinha descoberto a felicidade. O plano de imanência é a retomada do plano antropófago. O instinto caraíba da filosofia contemporânea. uma terceira margem também para a filosofia.
Quando certo Brasil, no plano da imaginação política, com os governos Lula e Dilma, assume a posição de um “continuar mudando”, o que está em jogo é precisamente a suspensão do pêndulo do poder que, através do medo, ou nos finca no mesmo lugar (reacionário) ou através de uma agitação momentânea nos conduz de um estado a um outro (progressista). Nesse sentido, permanece-se no pêndulo do poder que nos leva de um polo fixo a um outro polo fixo, numa passagem sem mudança, responsável pela interioridade própria a uma história descolada da situação material da vida, pois nela nada se passa e nada pode se passar. Uma resposta possível a isso é permeável na posição teórica do pensador italiano T. Negri. Todavia, o modelo subversivo negriano, ao opor a virtude do poder constituínte à sua desnaturação pela instituição, faz do virtual uma reserva inesgotável e sempre capaz de se subtrair à captura capitalística ("o caráter presumidamente permanente da inovação, do acontecimento, da criação", criticava com muita pertinência o filósofo F. Zourabichvili, ao apontar algumas divergências entre Negri e Deleuze). Dessa maneira, malgrado a si mesmo, ele depende da manutenção daqueles estados fixos representados pelas instituições, por vezes, até os clama e luta pela sua fixação ainda mais furiosa, para que assim, como bem viu F. Zourabichvili, o poder constituínte seja afirmado com mais veemência, em sua dimensão de exterioridade, em relação à instituição, a qual "sobrevém de fora para o integrar e o desnaturar". A conseqüência dessa operação se revela problemática: "tudo o que esse poder informe, 'ominiversátil' constitui, ele deve negá-lo imediatamente para permanecer ele mesmo; mas com isso, parece-me que ele não pode deixar, apesar de tudo, de se negar em parte a si mesmo". Tudo que esse modelo consegue ao criticar a transcendência vertical da instituição é afirmá-la ainda mais fortemente através da transcendência horizontal do poder constituínte, sendo incapaz de dar conta da instauração de novos "agenciamentos econômicos, sociais ou políticos", agenciamentos "jurídicos antes impensáveis", "novos direitos" e das novas realidades que eles tornam possíveis. É que o pensamento de Negri permanece principial e não há nada mais fatigante do que a eterna subversão contra os princípios que são, por isso mesmo, tanto mais afirmados. Já não era essa a razão pela qual o mesmo Zourabichvili, numa outra obra de grande vidência que inspira nosso exercício (cf. "O conservadorismo paradoxal de Espinosa") lembrava o quanto o filósofo polidor de lentes tinha em suspeita a revolução por ela ficar presa, pela própria subversão contra o tirâno, na "espiral da tirania", contribuindo apesar dela para sua "deriva bárbara"?


A suspensão do pêndulo do poder não implica uma simples subversão, mas a decisão perversiva de um pensamento capaz de permanecer atleticamente na mudança. "Conservadorismo paradoxal" de Bento de Espinosa, dirá Zourabichvilli, não como esforço para manter o que existe, mas para fazer existir o que se conserva. Não há outra maneira de fazer existir o que se conserva a não ser como estação na mudança, instauração de um espaço absolutamente novo, uma “terceira margem” roseana. "A questão da transformação trabalha do interior o motivo do perseverare in suo esse". Não surpreende, então, que essa estação na mudança contenha em muitos sentidos as características de um elemento que, na filosofia de Deleuze e de Guattari, instaura uma ambigüidade na ideia de revolução, entre a linha ocidental, pela qual ela remete a uma transformação do Estado, e a linha oriental, pela qual ela projeta a destruição do Estado. Ainda mais uma vez, como bem nota J.-Ch. Goddard, essa ambigüidade mostra que a verdadeira dicotomia não passa pela simples oposição entre o reacionário e o revolucionário, mas a própria revolução verdadeira passa pela dicotomia ENTRE o dispositivo do poder, dual ou binário que opõe dois estados, o reacionário e o revolucionário, o conservador e o reformista, E a máquina revolucionária que descodifica e estende o fluxo ilimitado de uma vida que se cria para além da codificação do social. Esse movimento vital arrasta todas as diferenças e hierarquias “sobre as quais se apoia essa luta lutando com elas”. Essa luta é o elemento que realiza uma verdadeira passagem do dispositivo do poder à máquina revolucionária, desfazendo os dois polos do dispositivo do poder, o reacionário e o revolucionário em sua linha ocidental: devir-revolucionário. É uma luta que, por se identificar plenamente com uma vida, implica “seguir mudando”, instaurando o que se conserva na mudança, o que passa longe igualmente de uma simples destruição do Estado. Por isso, o sentimento, motivo de crença, de que a classe sem nome não é implicada na polaridade eleitoral presente. Antes, é ela que implica o PT, seus governos e suas polarizações no antagonismo real de sua própria ascensão selvagem. Não há submissão do vulgus ao soberano, como alguns gostariam de nos fazer crer. Ao contrário, a multitudo em sua estação na mudança permanece submetida à suas paixões, mas ao menos se trata de paixões alegres e, como mostra ainda Zourabichvilli, há em Espinosa toda uma "elevação progressiva" da multidão livre seguindo o vetor da esperança, da vida e da liberdade, antes que o do medo, da morte e da submissão. Do mesmo modo, é preciso que a própria máquina estatal e suas instituições passem a ser compreendidas, para além das formas representativas da democracia, enquanto formação democrática instauradora de novos direitos que é preciso conservar para seguir mudando. É nesse sentido da conservação na mudança e instauração do que se conserva (novos direitos) que a instituição passa a participar da imaginação criadora de novas possibilidades de vida: "anarquia coroada".

É notável, portanto, que Goddard tenha reencontrado essa estação na mudança, essa "figura atlética da subjetividade", conservando-se tal como a figura baconiana, entre o limite e o ilimitado, no cinema revolucionário de Glauber Rocha tal como este nos apresenta o Sertão como espaço aberto onde o poder não pode alcançar e espalhar o medo. "Espinosismo obstinado" que nenhum spinozista parece enxergar, pois nunca puderam ver Bento, mas também um tranqüilo bergsonismo caraíba. O Sertão vive nos corações valentes como espaço vivo que não se opõe à cidade ou à floresta, mas as estende, que recusa o medo e afirma o inesperado. Sertão como potente vida que segue mudando e que vemos encarnada em Antonio das Mortes pois ele devem-revolucionário ao abolir o pêndulo do poder entre o reacionário (proprietários) e o revolucionário (cangaceiros expropriados): Antonio, esse si absolutamente im-proprietário. É notável que Antonio se diga justamente das mortes. Com efeito, morte se diz, num primeiro momento, das múltiplas mortes empíricas impostas aos ex-propriados para servir aos proprietários, compreendidas, assim, dentro do pêndulo do poder; num segundo momento, uma nova morte que se diz da suspensão da própria morte em que consiste essa vida capturada pelo movimento pendular relativo, portanto, uma morte como liberação an-arquica e emancipação vital pela qual ele se torna um im-proprietário. Antonio das mortes encarna, portanto, esse combate entre dois regimes de subjetividade no Brasil, ou antes, o combate entre um regime de poder vindo de alhures, do alto, transcendente e um regime de potência imanente, de heterogênese subjetiva. O Sertão sempre foi para nós uma arte e uma política, uma vida e um pensamento ou o lugar impossível de sua coincidência, portanto, tanto mais real quanto mais inventado: genético-nativo.
Falta a filosofia. Mas é preciso entender falta não como determinação negativa no sentido de que careceríamos de uma filosofia da qual se poderia dizer que ela é brasileira, mas falta uma filosofia no sentido de que a filosofia está por vir e seu tempo é o desse estar: uma estação na mudança. Pois se a filosofia se confundiu sempre com a Ontologia, com a história dessa "paixão inútil", fatalmente "malograda" (Bento), em todo caso, fatigante, que remete o pensamento ao Princípio, portanto, com o problema de uma unidade capaz de dar conta do múltiplo e de conduzi-lo ao Uno, compreende-se que não haja uma filosofia brasileira ou que não haja senão à maneira da reprodução colonizada da consciência enlatada - inclusive militante, quando se trata de compreender a vida política -, pois o devir-brasil faz uma só e mesma coisa com a abolição da Ontologia, portanto do próprio problema da unidade que se opõe ao múltiplo. Mas essa própria abolição, para não ser simples mergulho no informal, ou pior, restauração de novas Transcendências, ainda que constituintes, relacionais e horizontalizantes, já se compreende imediatamente como instauração de um processo a tal ponto perversivo que, através dele, a unidade se diz da multiplicidade e a estação se diz da mudança. Da perspectiva dessa estação, o Sertão aparece como o espaço onde a Arte, a Filosofia e a Política se encontram enquanto performances instauradoras. Assim, a performance filosófica de Bento Prado Jr., pela qual iniciamos esse breve exercício, se compreende rigorosamente como prática antropófaga da filosofia. O "bom canibalismo" atribuído ao amigo Rubens Rodrigues Torres Filho, poeta, filósofo e tradutor de Fichte, é também o dele próprio, Bento, já que, com ele, trata-se de não reconhecer fronteira, tal como a que separava o poetisável do não poetisável, o culto do cotidiano, o erudito do popular, o nacional do estrageiro. Se as fronteiras são abolidas, é porque uma linha intensiva alastra um espaço aberto, ambivalente, individuante no qual elas se precipitam e se abolem, como alturas e profundidades se precipitam à maneira de pregas de uma mesma superfície quando esta se estende. E Deleuze já mostrava como os princípios subterrâneos e os princípios elevados se desmanchavam numa filosofia das superfícies. O Sertão é a imagem literal glauberiana-roseana, Mundo no qual podemos, novamente, crer na medida em que não há outra crença que não a da própria estação na mudança como crença na imprevisível novidade e na criação de futuro.

Cleber Lambert, 24 de outubro de 2014, Santo Amaro da Purificação

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