quarta-feira, 13 de agosto de 2014

O Iraque, a História e a Guerra Eterna

História de Amor do Rei Gilgamesh em Uruk
O Iraque é o berço da civilização.  Uruk, Iraque, na Terra dos Sumérios. A cultura feita sistema de objetos técnicos pela primeira vez. Monumentos, escrita, cidades, essas coisas. Nos milênios que se seguiram, o Iraque foi ocupado por variados povos: acadianos, persas, árabes, otomanos -- mas, a rigor, a etnia majoritária do país é árabe há pelo menos quatorze séculos, com a minoria curda no norte desde tempos imemoráveis -- todos maturados por séculos sob o domínio implacável dos Império Otomano. O Iraque é múltiplo, vira-lata e antigo.

Mas em tempos de fim da História, o país é globalmente notório pela guerra. Não uma guerra qualquer, mas sim aquela que se emergiu como espetáculo total. A primeira guerra relevante da nova era, nos suspiros finais da Guerra Fria, o supra-sumo da era da televisão: Saddam Hussein, o senhor do fim dos tempos, foi derrotado pelas tropas americanas armadas com a mais alta tecnologia -- com direito à cobertura ao vivo da CNN. Os americanos deixavam de vez o fantasma do Vietnã: venceram rapidamente a guerra e derrotaram o inimigo interno, isto é, sua própria opinião pública; a crítica da imprensa americana morreu quando os jornalistas foram tornados capelães midiáticos, avançando junto das próprias tropas americanas, das quais suas vidas, aliás, dependiam. 

Para que as corporações de mídia se interessariam em denunciar eventuais abusos e falsificações se, de repente, poderiam transmitir o conflito na forma de um show de TV? O mesmo aconteceu em 2003, na esteira dos atentados de 11 de setembro, quando Bush Filho falou que o regime de Saddam possuiria "armas de destruição em massa" -- e ninguém investigou aquilo seriamente. Não era só o fato de que havia uma comoção social na América, mas sim que se guerra acontecesse, nem a CNN, nem a Fox, perderiam dinheiro ou audiência, muito pelo contrário.

A invasão do país, a destruição definitiva de Saddam e seu enforcamento bárbaro geraram um problema elementar. O que os americanos deixariam no lugar? Na verdade, não deixaram nada. Procuraram meios de retirar suas tropas e assegurar o controle de suas corporações sobre a riqueza petrolífera do país. Depois de anos numa ocupação longa, dolorosa e, sobretudo, caríssima para os cofres públicos de Washington, Obama promoveu a saída das tropas para se livrar da maiores problemas.

Obama deixou no poder um governo fantoche, montado em uma discreta aliança com o Irã, sob o controle da maioria xiita, excluindo os sunitas do poder. Enquanto isso, os curdos ao norte continuariam a receber algum afago para garantir, sobretudo, a extração petrolífera. A incompetência extrema, a incapacidade em instituir um ciclo virtuoso que levasse a alguma saída da espiral de miséria e violência, as vacilações levaram, em poucos anos, o Iraque "desocupado" se tornar um alvo fácil para "infecções oportunistas". Agora, isso deixa o Iraque na mira do ISIS, o bisonho movimento fundamentalista islâmico que atacou há bem pouco a Síria, sendo protagonista da guerra civil que violentou, e ainda violenta, o país vizinho.

Num jogo muito complexo, a Síria sob a ditadura laica da família Assad -- de direita fascista -- mas em aliança com o Hezbollah -- e consequentemente com o Irã -- se viu atacada por uma leva fundamentalista inominada. Mas com o apoio financeiro, militar e político de russos e chineses, o regime sírio, ao menos por ora, para "estabilizar" a situação com a manutenção do regime. As hordas fundamentalistas, então, avançaram sobre o Iraque onde já tinham atuado nas guerras civis que precederam a queda do regime de Saddam.

O ISIS, por outro lado, é um fenômeno desfocado, em relação ao qual conhecemos pouco suas origens. Mas ele é sunita e inspirado na doutrina wahabita, que domina a Arábia Saudita. Muito leva a crer que o regime da sudita não só não está ameaçado por ele como, também, parece se beneficiar da atuação do ISIS nas áreas onde a paz persa, sob a atuação de governos e forças xiitas, parece imperar. A disputa parece ser, no seio do islamismo, entre o xiitas sob a orientação do clero iraniano personificado no Aiatolá contra a influência do rei saudita que, sob o apoio americano, comanda um regime absolutamente intolerante na sua particular leitura do islamismo.

Uma parte relevante do discurso das vantagens de apoiar o ocidente contra o islã, em nome da liberdade, cai por terra quando pensamos que o regime saudita é sustentado por Washington. Pior, que inúmeros regimes laicos foram derrubados ao longo do tempo pelo ocidente ou, simplesmente, pelos americanos. A conta não fecha. A destruição promovida pelo ISIS e o risco de desestabilização absoluto do Oriente Médio levou a uma nova ação americana, com o bombardeio de bases rebeldes no norte do Iraque. Mas foi a brava resistência do partido comunista curdo, que testemunhou a aliança promíscua de turcos e do ISIS na guerra civil síria, que hoje evita uma tragédia maior.

Alguns sunitas iraquianos, fanatizados e oprimidos pelo governo xiita, aderem ao ISIS num surto irracional muito bem orquestrado, que desestabiliza fronteiras e expõe fraturas expostas da região. Na era do fim da história, no fim dos tempos, é irônico ver que o berço da civilização é alvo da destruição bárbara que sequestra civis, destrói museus e avança como um peste de gafanhotos. A disputa entre autoridade da teocracia xiita da Pérsia e a excentricidade dos wahabitas sauditas, a própria disputa sobre os rumos do Islã, é central em tempos nos quais os sócios disputam o poder do Império numa reconfiguração da ordem global que tenderá a ser muito dolorosa -- mais até do que pensávamos.





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