quarta-feira, 30 de abril de 2014

A Situação de Dilma: Navegando na Tempestade

A Nona Onda (Grie)
Desde as Jornadas de Junho, temos testemunhado um verdadeiro bombardeio de novas análises. Todos concordam que nada mais é, e possivelmente não será, como antes. Mas ninguém também consegue definir o novo. Agora, com a proximidade das eleições gerais, um aspecto profundo dessas incertezas vem à tona: é a primeira eleição presidencial na qual a polaridade entre uma direita neoliberal -- primeiro, acidentemente incorporada por Collor, depois capitaneada pelos tucanos -- e o Partido dos Trabalhadores -- um complexo agenciamento sindical-popular-socialista -- está abalada. Nenhuma das duas narrativas estão gozam de confiança profunda, tampouco seus líderes e representantes. 

Desde a redemocratização, foram 12 anos de governos neoliberais e quase o mesmo de governos petistas. Dilma Rousseff pleiteia a reeleição, lidera todas as pesquisas, mas está em xeque, questionada por vários setores, por diversos motivos.  Nada indica, no entanto, um desejo de retorno ao neoliberalismo, embora isso possa acontecer por motivos acidentais exatamente como no fim dos anos 90, quando a polaridade parecia ser entre capitalismo de Estado fascista e alguma forma de social-democracia. Os anúncios da queda de popularidade de Dilma, verificados desde Novembro -- quando cessou um movimento de recuperação desde o impacto causado pelas jornadas --, sobretudo a última queda (nas pesquisas Datafolha e CNT), criam um paradoxo: hoje, Dilma ainda venceria no primeiro turno, mas seus próprios companheiros e aliados ensaiam um forte coro de "Volta Lula!"

O ano de 2014, pois, marca a primeira eleição na qual as "esquerdas" não estão mais, pelo menos na sua larga maioria como antes, convictas de que o PT é a saída. Intelectuais, artistas, militantes e quetais sempre estiveram ali, se mobilizando ou desmobilizando de acordo com o norte dado pela bússola do partido da estrela. Talvez o único momento em que isso não aconteceu foi o primeiro turno de 1989, quando o trabalhismo de Brizola disputou palmo a palmo com Lula e o petismo a posição de líder do campo canhoto do espectro. E Lula venceu essa disputa, mesmo que tenha perdido para a direita. Mas os rumos da esquerda brasileira foram definidas ali. Ironicamente, Dilma, que foi um importante quadro brizolista entre os anos 80 e 90 e, depois, foi peça chave do esquema lulista é quem está no olho do furacão. Nem por isso, o PSOL ou qualquer outro partido de esquerda tomou esse posto. Nem o PSB parece que esteja sequer disposto a disputa-lo -- ao contrário da Rede de Marina Silva que, a rigor, ainda não existe. 

O que desejam os brasileiros, afinal? Eles sabem bem, uma sociedade mais justa, pacífica, humana, mas não sabem como realizar isso, como dar forma institucional à essa imensa tarefa. E quando têm alguma ideia, se deparam com uma desoladora falta de canais e espaços para construírem saídas. Eles se ressentem, eles desejam mais e melhor, mas não encontram bem o que querem, se perdem em um desejo difuso, uma flutuação de ânimo considerável. Mas se o punitivismo penal é aparentemente palavra de ordem, por outro lado, dificilmente os seus concordam com violência contra os seus: dificilmente se verá alguém de classe média defendendo punição à sonegadores de tributos, tampouco trabalhadores tolerando violência policial, ou arbitrariedades judiciais, contra os seus -- algo que não defendem, por exemplo, para a população que se põe para fora do regime do Trabalho. Na verdade, falta senso comum, ou melhor, o senso de comum.

Entre os jovens, mobilização como nunca. E eles desconfiam dos partidos socialistas, embora não queiram a direita: a geração mais bem informada da história do Brasil, integrada à Internet e à sociedade global, defendem quase em uníssono a luta pelos direitos civis, pelas liberdades todas, mas não tem um norte tão definido quanto ao resto. A sociedade da informação, das redes sociais, do compartilhamento instantâneo, por um lado, ainda está longe da História. Algo, no entanto, de maneira precária, provisória e experimental tem se criado, esteja ou não à altura das demandas impostas. É claro, a História pode esquecer, mas não perdoa, o que não muda o fato de que há algo em criação e aplicação agora, em matéria de política. Entre esses ativistas dos fins dos tempos, as formas de anarquismo e autonomismo parecem mais divertidas: longe da disciplina socialista, sem aquele sentimento pesado de dever...

Intelectuais e variados tipos de ativistas também se enveredam mais por aí, no fundo, pegando textos dispersos, a esquerda ativa pode até não saber, tampouco admitir, mas concorda cada vez com Bakunin e menos com Marx quanto ao plano de ação. A distância geracional entre os jovens de 16 ou 18 anos com seus pares dez anos mais velhos é, no entanto, enorme: o homem de 2003, por exemplo, é peça de museu. Em outras palavras, via de regra, os estudiosos -- e entenda estudioso aqui como pensador "de Estado", aquele chato que Deleuze e Guattari imaginavam como o cara que escreve em lei transcendente o caos que ele organiza -- não têm boas explicações sobre o que estamos passando porque, simplesmente, não há projeto de atuação política suficientemente forte para se apoderar, ou reapoderar, da disputa de forças posta, na forma como ela está posta.

Cá da parte deste blog, a hipótese traçada parte da leitura da composição de classes sociais. E o social é aquilo que está entre a confusão que se tornou o econômico e o político no mundo moderno. O Brasil mudou, em parte pelas mudanças globais -- e não me refiro à mudanças tecnológicas, mas no próprio uso dessas novas tecnologias -- e pelas transformações internas.  A ascensão selvagem da classe sem nome é o processo anômico de suspensão multitudinária de uma certa ordem tradicional brasileira. Mas ela não é aquilo nem que o PT ou a esquerda clássica desejavam ou esperavam. Tampouco é também o que o velho tradicionalismo brasileiro, que tomou a forma da pós-moderníssima social-democracia-neoliberal, quer. 

As duas linhas mestras, parecem equívocos, ideologias que se tornaram credo até para quem as professa: a primeira, do governismo, de que tudo está bem e sempre esteve, mas que todo o abalo é fruto de uma larga conspiração parece cada vez mais maluca e disparatada, sobretudo quando se vê que os frutos do atual ciclo são renegados; a segunda, que une a direita neoliberal e a esquerda socialista, de que tudo sempre esteve mal, mas ninguém dava conta, não consegue explicar o porquê o atual estado de coisas, sobretudo quando se percebe que o caos reivindicativo não produz, nem na média, nem na moda, qualquer narrativa que se enquadre plenamente no discurso oficial seja do PSDB ou do PSOL.  

A falta de adaptação de esquerdas e direita ao processo se dá, dentre outras coisas, porque uma força política qualquer, mesmo que perceba certas mudanças, nem sempre possui a potência de atuar com elas -- e eu duvido que estejam sequer percebendo o que está em curso, mas suponhamos que não seja esse o caso. Foi Marx o primeiro pensador a formular uma crítica à essa leitura de mundo que mistura explicação e, por assim dizer, wishful thinking, a vontade de que as coisas sejam como se quer que elas sejam, o que ele chamou de "ideologia", mas ironicamente os próprios partidos socialistas estiveram presos na armadilha ideológica: e isso explica parte do fracasso do "socialismo real".  

A direita, pelo menos os setores de direita na fora do aparato político formal, na mídia, é quem tem melhor se adaptado ao novo cenário: a política de captura começa como política de cultural da grande mídia. E a representação da classe sem nome se dá na forma da caricatura, o popular vira populacho. Ironia das ironias, um dos programa responsáveis pela sedução e captura da CsN, o Esquenta, da TV Globo teve um de seus dançarinos morto em mais um ato de abuso policial das doces Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) - e a resposta foi um programa especial de homenagem cheio de sentimentalismos e...absoluto vazio político. Nada de críticas, nada de denúncias, contrastando com a postura indignada e corajosa da mãe da vítima. 

A representação da classe sem nome em caricatura é central para entender o novo Brasil -- e foi alvo de recente artigo de João Telésforo, muito embora sempre vá frisar cá deste cantinho que é bom diferenciar a captura da existência a ser capturada (e da forma como essa existência re-existe nos sem número de levantes plebeus que acontecem agora mesmo pelo Brasil, sobretudo nas favelas cariocas).  Seja como for, o que interessa é que essa representação se dá, grosso modo, em uma mídia de Estado, estabelecida muitas vezes em concessões públicas -- nos casos da televisão e do rádio --  e sempre sustentada por dinheiro público por meio da publicidade estatal.  Essa mídia funciona como doutrinadora da sociedade e como  filtro ideológico dos governos.

Enquanto existe uma crescente desconexão entre o PT e o Brasil que ele ajudou a criar -- o que é "resolvido"com tentativas de domesticação e, até mesmo, repressão militar contra essa magnífica multidão em ações elaboradas pelo, ou com anuência, do executivo federal. A mídia clássica, enquanto brada por um neoliberalismo, vive justamente do setor público e da porta giratória entre este e o setor privado. Setores como o PSDB ou PSB, embora não sejam, na matriz, conservadores, navagem à deriva de conexão com a "sociedade civil" e quando o fazem, aproximam-se do mercado, ou melhor do oligopólio capitalista que ocupa qualquer coisa que possa chamada de mercado. Como do mesmo modo, a esquerda tem uma aliança tática, fugaz, ocasional com a multidão, mas sua força reside em franjas sindicais burocráticas.

Há, é verdade, a questão mal-resolvida da nossa transição democrática, que na falta de disposição real de varrer o "entulho autoritário", acabou por incorpora-lo -- como seu viu, já nos anos 80, no PMDB, o curioso e acidental sujeito político-partidário hegemônico da redemocratização. Não foi a Ditadura Militar que perdoou os torturadores, ele sequer reconheceu qualquer violência para poder perdoa-la, foi o STF da democracia, cuja quase unanimidade dos membros foi escolhida por governos eleitos diretamente e aprovada por um senado na mesma situação, que reconheceu a existência de violações e as anistiou usando-se da expressão vazia dos "crimes conexos". Não diríamos que houve, sequer, uma pacto político estável durante a estadia de Dilma no poder, como diria o mestre Idelber Avelar na sua série sobre o "enigma de Junho" -- na feliz reativação do Biscoito Fino e a Massa -- conforme avaliamos no post deste blog sobre um ano do governo Dilma.

A queda nas pesquisas é natural. A larga vantagem de Dilma é, obviamente, inflada, posto que em nenhuma ocasião das últimas três eleições, o PT, seja com Lula ou com Dilma, conseguiu mais do que 50% dos votos válidos -- calcule então nas atuais circunstâncias --, portanto, o pleito em disputa, apesar de toda histeria a cada movimento, é apertadíssimo e só deve ter uma solução no segundo turno. A vantagem é recall, a vantagem real certamente é menor do que isso, mas nenhuma pesquisa irá calcular isso para trabalhar com a ansiedade da direção petista face às quedas e, assim, negociar uma queda à direita por parte do segundo governo Dilma ou do terceiro governo Lula. 

A genérica leitura de que "tudo depende da economia" pouco quer dizer. Para os não-proprietários sempre há crise econômica -- que pode ser maior ou menor --, para os proprietários raramente isso acontece, mas quando acontece, e só aí, é que se fala em crise. O fato é que a política social-democrata aqui, e em toda parte, fracassou na tentativa de distribuir renda sem modificar a forma de exercício da propriedade: até as pedrinhas da rua sabem, embora nem sempre admitam, que a inflação europeia dos anos 70 era a maneira como o capital tentava anular, na formação dos preços, os ganhos salariais conquistados pelos sindicatos. Não era nada fruto de qualquer mistério ou de alguma lei transcendente que foi violada. Mas a social-democracia, embora pudesse saber, não foi capaz de admitir ou agir em relação a isso. E compactuou, como compactua, com o desmonte do Estado de Bem-Estar Social. As cartas estão na mesa e a situação se tornou mais tensa do que, em uma situação habitual, já tornaria, com a interdição do debate nos últimos quatro anos -- e o que iria acontecer em alguns anos, precipitou. E agora cai uma tempestade.







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