quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Entre os Dois Golens de Lenin: 10 Questões sobre a Ucrânia

Brendan Hoffman/Getty Images Via The Big Picture: Boston Globe
A crise ucraniana ocupa as páginas, físicas ou virtuais, da mídia global. Manifestantes, quase sempre mascarados, foram às ruas em protestos radicalizados duramente reprimidos pelas forças de segurança daquele país. O resultado é chocante, inclusive visualmente, uma pilha de mortos e feridos, destruição e algo que vacila entre o fim do impasse da existência do país e o seu fracasso definitivo. No último final de semana, o presidente da república foi destituído pelo Parlamento após ter tentado, em vão, costurar um pacto de governabilidade com a antecipação das eleições -- além do mesmo parlamento ter libertado a oposicionista  Yulia Timoshenko. O que diabos importa a situação da distante Ucrânia para o Brasil? Nada e tudo. Os resultados das manifestações ucranianas são apontados como exemplo para os rumos do que pode acontecer por aqui, no entanto, quais resultados são, realmente, esses, a despeito da captura política de lado a lado? Vamos, pois, por pontos.

1.  Esse fenômeno está conectado aos recentes levantes globais ou é algo local?

O levante ucraniano é parte dessa onda iniciada na Primavera Árabe, na Tunísia, justamente porque reflete uma tendência global e local: a conjunção de uma população fortalecida pelo absurdo acesso à informação promovido pela Internet -- e a cultura que isso envolve -- contrastada com um cenário de incertezas para o futuro -- sobretudo os mais jovens -- e, de tal forma, forçada a agir dentro de cada contexto social e local. Essa revolta não poupou dos Estados Unidos à Rússia, do Brasil de Lula e Dilma ao Chile de Piñera. Mas ela se mostra, em cada lugar, na forma que o calo aperta para cada sociedade. É um levante que se volta a cobrar as promessas não cumpridas da modernidade.

2. Washington e Berlim conspiraram para a derrubada do presidente Yanukovich?

Sim, mas tanto quanto Moscou e seus aliados trabalharam para eleger, e manter, o agora ex-presidente no poder. De certa maneira, em toda parte os blocos políticos internos se apoiam em blocos de poder globais que são ajuntamentos, mais ou menos coesos, o que pode ser mais intenso em Estados mais problemáticos. Na Ucrânia, o Partido das Regiões, de Yanukovich é pró-Rússia -- e vice-versa -- enquanto a oposição -- formada por muitos ex-burocratas "comunistas" -- é apoiada sim pelos EUA. Mas isso não é que o determinou o fato de manifestações gigantescas e radicalizadas tenham acontecido no país. Existem demandas muito reais que se impuseram, e a multidão ucraniana joga com as armas que tem ao passo que os blocos de poder busca captura-las a seu favor -- num jogo onde as duas partes se usam mutuamente.

3. A queda de Yanukovich foi um golpe de Estado, deposição dentro da Lei ou um processo revolucionário?

O parlamento ucraniano, a Verkhovna Rada, democraticamente eleito antes dos fatos em questão, aprovou o impeachment do presidente da república em um momento no qual, aliás, ele havia perdido amplamente sua legitimidade: sem tropas defendendo sua residência e com os palácios e os manifestantes ocupando as ruas, não havia o que fazer. Embora a atual Constituição Ucraniana, datada de 1996, tenha sido radicalmente transformada com o tempo, da Revolução Laranja (2004) e, depois, com o retorno de Yanukovich (2010) para, pouco antes da queda do presidente, voltar aos termos de 2004, é fato que não parece haver dúvidas de que o Parlamento é competente para remover o presidente da república -- como se depreende do capítulo V da Constituição, o qual regula os poderes do presidente, sobretudo o artigo 111.  De tal sorte,  o ex-mandatário ucraniano foi julgado e destituído pelo seu juiz natural. Mas pode se dizer que houve cerceamento de defesa pela rapidez do julgamento -- que é sim político e judicial --, fato sobre o qual a Suprema Corte local, no entanto, detém a última palavra. A rigor, foi um procedimento, em abstrato, dentro da ordem posta, embora possa se dizer que houve erro, a ser avaliado pela Suprema Corte. Do ponto de vista, político mais prático, no entanto, não resta dúvida que ele perdeu o controle. Pior que isso, Yanukovich possivelmente cometeu crimes contra a humanidade.  Mas, como sempre, o direito constituído se moveu de acordo com a constituição de direitos da multidão nas ruas.

4. A aproximação, ou não, da Ucrânia em relação à União Europeia, pivô da crise, seria um bom negócio para os ucranianos?

Sim e não. O que os ucranianos querem, em um primeiro momento, é garantir sua autodeterminação que, possivelmente, está ameaçada pela Rússia. E autodeterminação, aqui, é tanto política quanto cultural. Nesse sentido, o distanciamento de Putin é visto com bons olhos pelos diferentes setores da sociedade local. Se a aproximação política e econômica com a União Europeia, para além de mitigar a influência de Moscou, daria certo, é difícil dizer. A crise dos países periféricos da Europa -- vide Grécia, Portugal e Espanha --, a crise do próprio modelo da União Europeia, nos levam a crer que talvez isso seja um sonho impossível para ambas as partes, isto é, que logo da cara seria muito remota a chance do bloco europeu assimilar o país, quanto mais lhe gerar algum benefício econômico -- e antes das coisas explodirem, gente que acompanha a sério a região apontava para isso --, mas é preciso botar no cálculo o avanço do autoritarismo na Rússia e os efeitos práticos disso na vida dos ucranianos.

5. A Ucrânia está dividida?

Sempre esteve. O lado oriental do país, mesmo dentre os falantes de ucraniano, vê sua relação de uma forma diferente com a Rússia do que o oeste. Só há uma solidez nacional no oeste do país. Ao longo do tempo, os ucranianos se aproximaram mais do ocidente ou do oriente conforme a situação. É um movimento pendular defensivo marcado pela necessidade de sobrevivência. Se o primeiro Estado russo foi construído em torno de Kiev, depois as contingências da história fizeram os ucranianos se afastarem dos russos, mirarem o ocidente, o que lhes valeu o domínio polonês na Idade Moderna. Depois, uma nova reaproximação com a Rússia, a União Soviética e uma difícil reconstrução como nação independente.  O oeste, agora, é mais pró-Europa, o leste, pró-Rússia, muito embora ser pró-Rússia não se confunda com "pró-Putin", o que foi decisivo neste momento.


6. O que tem a ver a herança Soviética, sobretudo a questão nacional, e a atual crise?

Rosa Luxemburgo, em um de seus textos clássicos, A Revolução Russa, aponta o equívoco da estratégia leninista em insuflar o nacionalismo ucraniano com o intuito de derrubar o Tsar, o que lhe custaria caro mais adiante. Evidentemente, Rosa falava não afirmação da diferença nacional e cultural ucraniana, mas de um movimento extremista local. Ela acertou e a soma disso com a política de homogeneização, e russificação, da União Soviética quando do Stalinismo levou a um combate inevitável e inclemente no qual milhões de inocentes pereceram direta ou indiretamente. o nacionalismo ucraniano sempre caminhou entre a (necessária) afirmação da diferença cultural local, mas, por outro lado, numa variação negativa, ele também aparece, ou varia, como forma de criar uma unidade falsa que naturaliza a opressão interna em nome de inimigos externos. Não há como analisar de forma maniqueísta a questão. Mas o fracasso da política soviética de nacionalidades, um dos compromissos étnicos fundamentais e fundantes da União Soviética, foi decisiva para construir o atual quadro de tensão lá e em outros países da região: da homogeneização à força que começou em Stalin resultou o extremismo nacionalista como reação. Entre Stalin e os nacionalistas locais, os ucranianos ficam entre os dois golens de Lenin

7. A União Soviética era anti-ucraniana?

Não, a União Soviética chegou a ser governada por ucranianos -- Nikita Khrushchov e Leonid Brezhnev --, o que houve é que, colateralmente, a política de homogeneização russa -- levada a cabo, vejamos só, por um georgiano como Stalin -- e o autoritarismo que valia contra qualquer variante ideológica e cultural vitimou profundamente o povo ucraniano. Em duas situações trágicas isso foi evidente, a primeira no chamado Holomodor, a peste de fome causada pela estatização stalinista da agricultura e, depois, pelo desastre nuclear de Chernobyl, causado pela incompetência de uma já decadente União Soviética em lidar com o acidente. Há um uso, pela Ucrânia independente, de colocar isso nos termos de um declarado e específico anti-ucranianismo pelo poder soviético, o que não aconteceu propriamente.


8. A extrema-direita ucraniana tem, agora, o controle da situação?

Não propriamente. O nacionalismo, por n razões, é fortíssimo na Ucrânia. Mas não é ela que, sozinha, determinou ou motivou todo o conjunto de manifestações. Inclusive porque é um movimento que cresceu, sobretudo, por conta da resistência popular à violência policial e militar e que defende, ainda que de maneira ingênua, os valores do europeísmo -- o que tem determinado processos regulares de direito nos procedimentos postos em prática. Mesmo em um cenário que as coisas mudem, é altamente improvável que a ultra-direita tome o poder e consiga mantê-lo. O novo governo, inclusive, terá de moderar suas posições para que o país não se divida. Muito mais grave, nesse aspecto, é a situação de um país como a Hungria, o qual aconteceu dentro de um processo eleitoral regular.

9. O que isso diz para a Rússia?

A Rússia, em tese, tem se recuperado do duro processo que foi da estagnação soviética à reabertura, mas, ao mesmo tempo, o avanço gradual do autoritarismo de Putin lhe é um problema interno. A crise ucraniana faz com que a questão cruze suas fronteiras.  As demandas por democratização chegam à região. Isso ajuda ao imperialismo americano? Talvez, mas é ridículo, em pleno século 21º, que em nome da contenção à conduta americana, que se tolere abusos autoritários em nome disso, inclusive porque eles não só são desnecessários como, aliás, fortalecem a posição intervencionista americana pelo globo, uma vez que permite apresentar tropas como legítimas defensoras da liberdade. Difícil é crer, num primeiro momento, que possa haver uma junção entre os movimentos russos e ucranianos, o que é ruim, mas também não quer dizer que isso não possa acontecer.

10. A crise ucraniana diz o que para o Brasil?

Que existe uma demanda global por mudanças, que essa multidão permanente, constituinte da grande rede de produção, sobretudo seus jovens, não é capaz de aceitar, conformadamente, um futuro qualquer, mas que ela luta de acordo com as contingências que lhe cercam: não esperem um coerência ou uma fidelidade "ideológica" tal como compreendida no século 20º. Mais ainda, que respostas repressivas para essas demandas é o caminho para um desastre, muito embora esse confronto seja melhor do que a manutenção inercial de um regime de força. Falar em como manifestações levam, necessariamente, ao fascismo é de um raciocínio limítrofe. A aceitação bovina de uma doutrina de segurança, repressão e leis de exceção certamente são mais perigosos em matéria de fascismo.







4 comentários:

  1. Concordo com quase tudo, exceto o ponto 5. Dizer que "os ucranianos" fizeram isso ou aquilo na Idade Média ou tiveram um "movimento pendular defensivo" é puro anacronismo. Nessa época, a atual Ucrânia era apenas um território disputado. "Os ucranianos" como nacionalidade ou identidade são resultado de um movimento de meados do século XIX, que provavelmente teria caído no esquecimento se não fosse pela política de nacionalidades leninista.

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    1. Mestre Antônio, muito obrigado pela visita! De todo modo, creio que uma coisa é o nacionalismo ucraniano -- de fato, um fenômeno do século 19º potencializado, depois, por Lenin -- e outra a nação ucraniana que, de fato, já existia. Basta ver que havia escritos em ucraniano na Idade Média -- e uma dúvida entre o uso ou não do alfabeto latino em vez do cirílico.

      abraços

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  2. Tremendamente falso o final deste artigo, porque sabemos que um sistema de manifestações conduzidas com um fim, ou outro, podem propiciar a instalação do regime que as promoveu. Não estou nada de acordo que seja um raciocínio confinante que essas manifestações possam levar ao fascismo, e a prova disso foi o que aconteceu no Chile a Allende: as manifestações das madames de tachos e panelas e estolas de Arminho, conjugadas com a greve dos patrões das empresas de transportes, acabaram na ditadura fascista de Pinochet. Serve?
    Outra questão, é a questão do ditador que neste caso, até está a dar um grande jeito à estratégia, mais difícil de implementar se ele não existisse.

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    1. E o que me diz da greve estudantil que, de repente, se tornou um fenômeno nacional no Chile ferindo o governo conservador local de morte, serve? Não é tão simples assim.

      abs

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