quinta-feira, 4 de julho de 2013

O Levante da Multidão, a Classe sem Nome: Entre Selvagens, Bárbaros e Civilizados

O Brasil vive dias agitados. As multidões estão nas ruas reivindicando tudo e nada. O momento brasileiro atual em suas peculiaridades, perigos e novidades é singular enquanto evento, embora não se trate de uma espécie tão exótica assim ou, tampouco, esteja desvinculado do processo de lutas brasileiro e global. Enfim, é algo novo num sentido imanente, jamais uma novidade transcendente – como acaba representado pelo discurso do poder, o qual move-se desta forma por precisar apagar, a todo custo, a memória da resistência, transformando esta situação em um corte absoluto, uma espécie de fenda nos céus do qual cai um deus ex-machina na forma de um gigante.

Dizemos que o presente levante é singular, pois suas feições decorrem da composição técnica do trabalho metropolitano própria ao capitalismo cognitivo, de uma abundância material – tanto social quanto econômica -- própria dos anos Lula e de ferramentas de luta próprias ao nosso tempo como sublinha Giuseppe Cocco. Mas existe uma coincidência que une este momento a outros episódios históricos, seja por sua posição histórica enquanto efeito das tensões da luta social – que não apareceu agora – ou pela maneira como ela expressa uma distonia semelhante a que se via nas ruas parisienses de Maio de 68: miséria afetivo-política versus abundância efetivo-econômica.

A miséria afetivo-política à qual faço aqui referência é o fechamento dos espaços de resistência comuns aos movimentos sociais no campo político, cuja estrutura principal era, desde as lutas constituintes que derrubaram a ditadura militar brasileira, o Partido dos Trabalhadores. Uma vez na chefia do governo do Estado, ainda que de forma frágil e ameaçada, com o presidente Lula, uma série de medidas que deflagraram a abundância atual foram tomadas: o discurso moderno da esperança entrelaçava-se, de forma ambivalente, a uma alegria renascentista de fazer política.

A ascensão de Dilma à presidência foi menos com uma mudança pessoal na cabeça do Estado, mas a resolução deste dilema, com a arimética tomando o lugar do ritmo, o futuro glorioso ditando o presente, a despeito do aqui-agora. A “modernidade” como paradigma de governo no Brasil dos anos 2010 parte de Dilma, não por ela ter inventado o mito gerencialista, mas por ela, no comando prático de quem afirmava a subjetividade, ter praticamente renunciado à política. O ingovernável é menos a perda da super-maioria parlamentar, mas o temor de se deparar com o indecodificável no plano da política.

Nada disso, evidentemente, é novidade como sublinhei em pelos duas outras ocasiões nesta mesma Casa de Rui de Barbosa, nos dois últimos anos. Mas se naquelas ocasiões, os fluxos já estavam represados nos canais pelos quais eles correram por tanto tempo, agora eis que a barragem arrebentou e a vazão da água é violentíssima.

Retomando o que está posto acima, não é uma experiência alheia às revoltas e levantes europeus dos anos 60 e 70, quando a social-democracia, ao fornecer a base material para tanto por suas políticas de bem-estar social, foi incapaz de reinventar-se para constituir o comum das lutas. Em meio às atribulações causadas pelo repasse dos “custos” do bem-estar social para os preços, operado pelo capital, e a força reivindicatória, no entanto, burocrática, vertical e lenta de partidos de esquerda e sindicados, sobreveio uma ruptura letárgica, suprida pela flexibilidade neoliberal. Thatcher fez a cirurgia que nazistas e fascistas sonharam, pois sabia usar anestesia.

Mas o Brasil atual encontra-se em meio ao paradoxo histórico de estar no pós-neoliberalismo enquanto o abismo desta ruptura letárgica se avizinha. E não há mais uma centralidade decadente do trabalho fordista, mas, de fato, uma nova composição do trabalho, na qual a remuneração salarial, o emprego e o proletariado industrial já não tem mais lugar. O modernismo de Dilma, a esperança no progresso civilizatório tecnicamente alcançável, aplicado verticalmente como bálsamo contra a pós-modernidade horizontal e hegemônica, na qual a vontade de segurança face ao desespero generalizado é total(izante), culminou em uma resultante ontologicamente incalculável e imensa.

A ascensão selvagem da classe sem nome, que propus ano passado, como paradigma efetivo dos anos Lula, mantém-se em curso: e isto vai desde uma suspensão da Lei Maior oculta que ordena o Brasil até a derrogação iconoclasta de estatutos e convenções. Uma delas, a da lei do número e da quantificação, com focos de explosão aqui e ali, sempre que se tenta a tradução dos modos infinitos em dados. Como disse naquela ocasião:


A classe sem nome, portanto, é um monstro como aqueles que se perfilam no claro-escuro do entretempo entre o velho mundo que morre e o novo que tarda a nascer -- para citar aqui Gramsci lembrado por Bruno Cava. Enquanto monstro, essa classe é ambivalente, mas tal ambivalência se desfaz no fato de que, no fundo, ela, como qualquer monstro, apenas deseja ser amada, embora suas feições assustadoras não ajudem muito na empreitada: e o que vemos, hoje, no Brasil senão uma perseguição fantástica com tochas e arados contra essa classe sem nome, esse monstro feito dos retalhos possíveis -- e como o PT, ele mesmo, se comporta como um Dr. Frankenstein extemporâneo (mas igualmente neurotizado), em desespero por ter autorizado essa criatura a desejar, quando poderia ter lhe dado uma vida meramente vegetativa, se era o caso de fazê-la viva”

Sobreposta à devoração da civilidade desde dentro, de modo selvagem, ocorre o atual evento, bárbaro na metáfora – descrito como um processo de vandalismo – e na metonímia. E na barbárie, despotismo e liberação, bailam desde sempre, esquizofrenicamente. A barbarização da classe média frente a civilização é, em outras palavras, a exposição de sua insustentável condição de existência, espremida entre os seus sonhos de segurança e glória social e a incapacidade obter os meios para tanto.


É a partir daí que podemos traçar uma linha que nos permita entender/operar em meio às energias conjurantes. Não há medo ou esperança que possam designar, satisfatoriamente, o monstro que caminha agora nas ruas, tampouco há segurança possível ou desespero irremediável face ao seu rosto disforme. O monstro está, o que ele será, trata-se de mera conjectura. Seu signo é a própria flutuação de ânimo, o seu terreno é menos o do amor e do ódio e mais o do ciúme e da carência afetiva.

O movimento monstruoso não tem fim certo ou previsto. Não tem itinerário. Ele não é governista ou governável, mas tampouco é anti-governo, ele é desgovernado. Sua constituição não está dada, ela é uma metamorfose ambulante. O que resultará dele é o que fizermos de si, numa prudência terapêutica de nós mesmos: novos agenciamentos, constituições e determinações positivas de afetos.

Nesse sentido, o fantasma do fascismo, a perversão do desejo gregário, não está longe, nem poderia estar longe. A violência e o modo de vazão da correnteza não permitiria nada substancialmente diferente. Mas a naturalidade da constatação não pode nos fazer alheios, embora nenhuma paranoia possa ser tolerada: talvez seja hora do devir-animal de Deleuze, lembrando que o animal é aquele que está sempre à espreita.

Do outro lado, é inegável a abertura, mesmo a fórceps, da democracia, o que se vê na proposta de Dilma de realizar a reforma política depois de um plebiscito. Isto faz com que o discurso da mídia de captura dos manifestantes seja reduzido a pó, uma vez que resta exposto seu desejo seletivo de presença popular (nas ruas contra o governo sim, votando, não!), e, também, expõe o horror à multidão dos velhos oligarcas do parlamento (sejam os “modernos” ou os “retrógrados”) – como se fossem senadores romanos de um tempo muito antigo, que sequer aceitam a voz dos plebeus reunidos em assembleia.

O momento requer ação criativa, requer intensidade, sem perder de vista os limites do corpo tensionado: sem tensão, vem atrofia, com tensão demasiada, ele estoura. As balas de chumbo na Maré comparadas às balas de borracha da Avenida Paulista nos levam, de um modo pungente, a perceber qual a cota do latifúndio que caberá a cada um. Aconteça o que acontecer, o discurso administrativo-economicista foi a pique, seja lá de qual identidade ideológica for, e a luta é constituir causas políticas suficientes para suplantar a polícia militar, ideológica, judicial, burocrática ou, sobretudo, o tira(no) que há nas nossas cabeças.



2 comentários:

  1. Hugo, estava pesquisando sobre o Poder Constituinte na concepção de Antonio Negri e me deparei com uma bela postagem sua sobre o assunto (http://descurvo.blogspot.com.br/2012/03/poder-constituinte-vida-e-direito.html).

    Estou cursando o quarto período de Direito, mas gosto muito de constitucional e faço leituras extra-faculdade sobre os assuntos. Este livro do Antonio Negri, por exemplo, O poder Constituinte, descobri pesquisando sobre crítica do poder constituinte no Google.

    Gostaria de saber se você teria livros relacionados aos temas de teoria da constituição para indicar a leitura.

    Um abraço!

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    1. Obrigado, Anônimo. Leia Negri, mas faça um retorninho tático e leia Spinoza (Tratado Teológico-Político, Ética etc) e Nietzsche (sobretudo Genealogia da Moral, Para Além do Bem e do Mal etc). É importante compreender bem a filosofia da imanência para chegar numa concepção boa de constituição enquanto processo, e força, constituinte, via e atuante.

      abração

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