quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Entre a Instituição da Crise e a Crise Institucional

Camuccini
A crise institucional que o Brasil vive no presente momento, por sua vez, trata-se da medida de exceção pela qual o Superior Tribunal Federal (STF) resolveu suspender, de forma branca, a vigência ao §3º do art. 55 da Constituição Federal, entrando em confronto com a Câmara dos Deputados Federais. Na prática, o STF, deliberando sobre os limites de sua própria competência, decidiu de forma absoluta que consequências condenatórias de sanções penais suas, contra detentores de mandatos eletivos parlamentares, gera a obrigação do legislativo declarar a perda do mandato. Na prática, o STF arrogou para si mesmo a competência de cassar mandato de parlamentares e, também, confundiu perda dos direitos políticos com automática perda de mandato.

Por que isso é tão absurdo? Primeiro porque começa com um órgão decidindo sobre os limites de si mesmo. Depois, porque rompe com a divisão entre o político e o estritamente jurídico (ou talvez seja jurídico-judicializável), que é uma abertura para a atualidade da constituição de direitos nas cartas constitucionais ou, em termos simples e mais imediatos, equivale ao seguinte: romperia-se a barreira que existe no nosso ordenamento e que impede, por exemplo, um golpe branco por via judicial direta; agora bastaria uma decisão judicial e pronto. O que dizer do impeachment, agora?

Parlamentares possuem mandato, cuja natureza é sobretudo política, portanto, eles o perdem de acordo com a votação de seus pares -- um juízo, naturalmente político. Outra coisa são as condenações judiciais que eles podem sofrer, ressalvadas as necessárias limitações que o poder judiciário tem para julga-los -- cuja serventia é, precisamente, evitar perseguições políticas por via judicial. A divisão é necessária, a menos que você seja suficientemente ingênuo ou fascista para ignorar que (a) nem todos os condenados são necessariamente culpados; (b) que quem está imerso na atividade política está particularmente exposto a esse tipo de condenação, sobretudo na falta de uma oposição capaz de vencer nas urnas, pelo voto. 

Essa separação, embora funcione mal desde sempre e em toda parte, é necessária, ao menos como esforço, para evitar que um órgão dite as normas acima delas -- eu crio as leis, eu defino meu espaço e minhas competências, a lei existe, mas é referencial que usar para ultrapassar e condicionar os outros, tão somente eles. A diferença entre a exceção soberana permanente e os monarcas autoritários de séculos atrás está, tão somente, no caráter puramente sistêmico e não pessoal da coisa, nada mais. Mas a exceção hoje não está em um regime autoritário que se assemelhe a um absolutismo, um totalitarismo, mas sim em uma operação que se dá por dentro das constituições democráticas e das democracias formais. O cândido neoconstitucionalismo sempre acalentou essa ideia inconfessável

Ao fazer isso -- e não foram poucas situações recentes nas quais isso aconteceu, ou melhor, lembremos do caso Battisti --, o STF se colocou absolutamente acima das leis, além de romper a fronteira entre o político e o judicial, fazendo o segundo tutelar o primeiro -- o rompimento da autonomia da condenação pelos pares, contida na simbologia da perda do mandato ocorrer por declaração da mesa diretora da Casa legislativa à qual ele pertence, inclusive é mau sinal: desde a magna charta é assim e de lá para cá, lá se vão 800 anos. No nosso bom Estado, como em toda parte, fale-se em separação dos poderes para vigia-lo devidamente, mas sempre haverá quem dê a palavra final. É o segredo sujo do sistema. Disputa pelo poder é disputa pela palavra final [de dizer não].

A eliminação da esfera que a Constituição reserva ao político -- que, na verdade, é o jurídico não judicializável tipicamente -- por sua tutela judicial é um risco. . Eliminar esse "político" é tornar o que já é ruim pior, e demandaria juízes perfeitos, ao mesmo tempo que em seu princípio nega que o representante melhor é aquele que se legitima frente ao povo, mas sim o que domina uma linguagem sequer compreensível -- e que não é feita para isso -- para as pessoas comuns -- e que resolverá os problemas pondo-se acima de todos. Uma iconografia que já doentiamente platônica, idealista até o talo, seria extremada: temos nossos reis-filósofos, ou julgadores totais-juristas.

Tudo passaria a ser objeto de julgamento e o monopólio pertenceria aos juristas togados; a parafernália judicial, o discurso que só os inteligentes entendem, pairaria sobre a subjetividade discursiva, não há democracia nisso mas uma aristocracia -- no sentido etimológico do termo mesmo -- de juízes. Se no campo da filosofia é sempre de bom tom relembrar o "desejo de fascismo" das massas de Reich, pensemos, em termos jurídicos como Pedro Serrano: desejo de exceção [soberana]. E toda essa celeuma, para qual o presidente da câmara, o petista Marco Maia, ganhou o apoio de tucanos e demistas -- até do editorialista da Folha, pasmemos -- tem pouco a ver com se a câmara deve ou não cassar os deputados condenados no processo do mensalão, mas que ela deve e pode decidir autonomamente. Porque, pelo menos, disso se pode questionar o processo de alguma forma.

Eis a crise institucional, a situação na qual as engrenagens de uma organização política se chocam, colocando sua racionalidade discursiva em colapso. Ela não é propriamente estatal, embora, hoje, elas o sejam por tabela. É o Estado em confusão. E não há crise que não seja boa, uma vez que crises só nascem quando o absurdo cotidiano, de algum modo, seja posto à tona pelo confronto. A presente crise é ótima. Aponta uma dobra, pela qual, apesar da pirotecnia e do fetiche pelo linchamento que pesam contra, podemos discutir eticamente a fratura essencial da forma estatal (da nossa, inclusive), a questão da palavra final -- e, por óbvio, sua faceta exposta no Brasil de hoje que é o próprio STF justiceiro. O que está em jogo, meus caros, é menos o mandato de uns reles parlamentares e tanto mais o futuro do instituto do impeachment.  



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