domingo, 30 de outubro de 2011

Notas sobre uma História que Flui

Escrevo este post depois de semanas sem postar nada. Deve ter sido a maior interrupção de postagens da história deste blog. Foram semanas bem agitadas, sem dúvida. Uma campanha (vitoriosa) para Centro Acadêmico, uma viagem para o Rio, na qual eu tive a oportunidade de conhecer o mestre Bruno Cava e o Giuseppe Cocco, além, é claro, de ver o início da ocupação da Cinelândia que, segundo nos relata o próprio Bruno, segue animadíssima. 

Enquanto isso, a História segue em curso, com imagens contundentes se concatenando em flash: o linchamento de Kadafi, as acampadas pelo mundo, a vitória esmagadora de Cristina Kirchner na Argentina, o câncer de Lula - divulgado ontem, que a todos (humanos, não os chacais de plantão) entristece.

Resolvi voltar para o movimento estudantil, depois de uma quase aposentadoria, por conta do agravamento da crise da PUC e os enormes problemas que se avizinham para o ano que vem, além do momento político que vivemos pelo mundo. Hoje, não há como ficar parado e se sentir vivo ao mesmo tempo...

Já tinha me esquecido do misto de euforia e desgaste físico e psicológico total que é estar em campanha no Direito. Rodar corredores, passar em sala, distribuir cartas-proposta e, desta vez, participar de longos debates - dois de três horas, graças ao grande número de chapas, no mesmo dia. Conversar com quase três mil estudantes, convencer o pessoal a ir às urnas e tudo mais. Foi bom sentir isso de novo, ainda mais tendo uma marca impressionante de 68% dos votos no fim das contas.

O clima político que vivemos é singularíssimo. Não há mais espaço para as utopias nem para as distopias. E isso foi forjado na luta. Diante do impasse de um sistema que nada mais é do que um cão que persegue a própria cauda, o modo de luta que se impõe é em rede. O conformismo conservador norte-americano tomba, ao mesmo tempo, do sistema cubano e isso não é mera coincidência.

A esquerda, como insistimos há muito por aqui, precisa retomar algo que já estava em sua gênese, embora tenha se perdido em meio ao salvacionismo jacobino: sua função não é ser um outro, o outro caminho possível, mas sim ser a afirmação de que, na verdade, há vários caminhos; seu papel é articular as partes desconexas que se atritam no Capitalismo, não tentar universalizar particularidades e reforçar um binarismo qualquer.

Voltemos, pois, ao batente.

P.S.: Dia 09 de Novembro, estarei de volta Rio, em um seminário na Casa Rui Barbosa, encerrado pelo grande Antonio Negri. Falarei na mesa das 14 horas, mediada pelo Bruno segue aqui a programação:
quarta-feira, 9 de novembro de 2011, das 10h às 20h
A crise do capitalismo global, iniciada em 2007-2008 com o estouro da bolha imobiliária, entrou numa nova fase que envolve as dívidas soberanas das economias centrais. Num primeiro momento, os Estados despejaram trilhões de dólares para socializar os custos da crise dos mercados e, em seguida, passaram a destruir os resíduos de Welfare State, fazendo com que os pobres e os trabalhadores paguem a crise. A indiferenciação da política avança a largos passos e governos de centro-esquerda (Espanha) aplicam as mesmas receitas que governos de centro-direita (Reino Unido). Diante desse impasse, a verdadeira inovação apareceu na primavera árabe, nos protestos de Londres e Roma, no movimento da multidão espanhola e agora nas ocupações e acampadas que se globalizaram a partir do 15 de outubro. Este seminário será um momento de reflexão sobre esses eventos e movimentos, para pensar nas "revoluções" capazes de construir uma nova esfera política, além do Estado e do Mercado, um direito do Comum.
Coordenação:
Giuseppe Cocco (Universidade Nômade)
Mauricio Siqueira (FCRB)

10h
 Mesa I - PODER CONSTITUINTE E DIREITO DO COMUM
Mediação: Tatiana Roque (UFRJ e Universidade Nômade)
Adriano Pilatti ( PUC-Rio e Universidade Nômade)
Mauricio Rocha (PUC-Rio e Universidade Nômade)
Francisco Guimaraens (PUC-Rio e Universidade Nômade)

14h
Mesa II - POLÍTICAS DO COMUM
Mediação: Bruno Cava (Uerj e Universidade Nômade)
O Comum Organiza o Direito, Bruno Cava (Uerj e Universidade Nômade)
Os paradoxos do Desenvolvimentismo, Hugo Albuquerque (PUC-São Paulo)
A anomalia brasileira, Pedro B. Mendes (UFRJ e Universidade Nômade)
Direitos Humanos e Altermodernidade, Eduardo Baker (Uerj)
Políticas do Comum, Alexandre Mendes (Uerj e Universidade Nômade)

17h
Lançamento do livro A crise da economia global, de Giuseppe Cocco
Editora Civilização Brasileira

18h
Conferência de Antonio Negri
CRISE E REVOLUÇÕES POSSÍVEIS
Coordenação de Giuseppe Cocco

Auditório
Entrada franca
Informações: 21 3289 4636


sábado, 15 de outubro de 2011

15 de Outubro

Zizek em Wall Street
Vivemos uma época de inquietações. Da Primavera Árabe ao Democracia Real Já da Espanha, passando, agora, pelo Occupy Wall Street - a curiosa ocupação física dos arredores do maior centro financeiro americano que, agora, se espalhou por várias cidades americanas, algo surpreendente em um país que parecia condenado à inércia do fundamentalismo e dos protestos do Tea Party. Pelo parque Zucoti, situado no núcleo do centro financeiro, já passaram Naomi KleinSlavoj Zizek entre tantos outros. Hoje, 15 de Outubro, um protesto foi sincronizado em várias partes do globo - como, p.ex., na cidade maravilhosa, como nos conta o nosso Bruno Cava. O caso brasileiro, diante da crise que assola o mundo, é paradoxal: não estamos relativamente tão mal ao mesmo tempo em que a sensação de respiração presa, por aqui, é das piores. Se por um lado, as inquietações da crise mundial já chegam aqui e o modelo social-desenvolvimentista acusa seus fracos, por outro lado, não há, ainda, uma força capaz de catalisar nada efetivamente. A dita oposição à esquerda do atual Governo Federal, convenhamos, se fia em modelos vanguardistas e praticamente blanquistas. Não à toa, ele é insignificante. A luta passa por outros meios e não há nada mais a serviço da ordem do que, curiosamente, a esquerda partidária brasileira. Isso, é claro, também não exime o próprio PT de suas responsabilidades - como dizemos há tanto tempo, ou ele catalisa o que produziu ou vai ser engolido tão logo pelas próprias mudanças que ele se orgulha de ter produzido. A questão é saber para onde o vento vai, porque se a oposição não tem ideias e mesmo eleitoralmente vai mal, estamos diante do típico projeto suicida que se der certo nas urnas, resultará em frangalhos em um eventual governo. O Brasil e a América do Sul foram dos vetores mais pulsantes da última década, indo na contra-mão do mundo - o que não é estranho à região, embora pela primeira vez isso tenha sido bom -, mas agora vivemos um momento de perplexidade. É necessário, mais do que nunca, fazer poesia da tragédia.

domingo, 9 de outubro de 2011

O Papel dos Intelectuais no Contemporâneo

Voltaire e Diderot no Procópio, os cafés e o Iluminismo
Idelber Avelar, em seu novo blog, lançou, para variar, uma bela discussão ao se prestar a refletir o papel dos intelectuais no pós-lulismo. Não pude resistir a fazer um comentário e, agora, entrar na conversa - tal como o Gilson já fez. Em um primeiro lugar, o intelectual, tal como nós o conhecemos, está obsoleto seja pelos motivos certos ou errados. Uma vez hegemônico, o capitalismo cognitivo, a exemplo do socialismo "real" - ou mesmo os EUA dos anos 60 -, não precisa mais do intelectual, passando assim não só a cessar sua produção como também trabalhar para neutraliza-lo. A bem da verdade, as várias identidades subjetivas historicamente existentes ligadas ao conhecimento - sua produção e difusão - , seja o filósofo, o sábio ou o intelectual, sempre serviram ao Poder no seu processo de ascensão, mas para sua consolidação é imprescindível sua eliminação - ou conversão em lacaios amestrados, o que não deixa de ser uma forma de extinção, convenhamos...

O chamado intelectual público, aquele sujeito que se projetava da Academia para o equivalente da Praça Pública - parido nos cafés da velha Europa -, é incapaz de lutar pela sua própria sobrevivência, quanto menos monopolizar os desígnios de qualquer coisa que seja na política. Ela está obsoleto. Talvez o sujeito intelectual esteja. Não é só porque a burocratização da sociedade esteja grassando e aquilo que o Idelber chama de técnico se imponha - por um fenômeno que, ao nosso ver, trata-se de um fenômeno muito maior do que a Reforma Universitária dos anos 90, algo da qual ela, na verdade, é consequência -, mas porque sua figura está empoeirada. Ele remete a uma sociedade disciplinar que não existe mais, mas aos novos dispositivos de controle que se desenvolvem desde os anos 70 em um túnel no qual não conseguimos enxergar, ainda, a luz - e ainda corremos o risco da luz que aparecer ser, na verdade, o farol de um trem vindo em direção contrária.

Um intelectual, hoje, só pode produzir mudanças quanto reconhece que, sim, ele é importante, mas não, ele é só uma parte da História. O dito espaço público foi-se, naufragou na contemporaneidade. Em um país como o Brasil, a população está cada vez mais apartada, as classes sociais não se cruzam mais na Escola Pública, as classes sociais estão urbanamente isoladas - uns morando em condomínios de luxo fechados, outros, guetificados nas favelas -, as classes sociais estão apartadas até, vejam só, quando se encontra nas intermitências da morte, nos Hospitais. Essa é a dura realidade do fenômeno que alguns identificam - imprecisamente, ao nosso ver - como neoliberalismo, mas que é muito mais do que isso, na verdade - e neoliberalismo passa uma ideia errada de que o Estado está sendo diminuído, quando, ao contrário, ele nunca foi tão grande e nunca teve tantos tentáculos.É fato que existe uma nova intelectualidade ascendente, possivelmente dentre os quotistas das universidades federais e os prounistas, eles, diferentemente de seus colegas bem nascidos, precisam pensar para sobreviver. Mas isso, por si só, não é suficiente para nada.

Existe, aliás, um aparente paradoxo entre a figura do presidente operário que deu certo e que reestruturou as universidades federais e a de seu antecessor, notório acadêmico, que fez exatamente o contrário - dessas finas ironias históricas. Isso nos ensina, talvez, que o voluntarismo lulista em dar aos outros o que ele nunca teve é, em grande parte, um engano - ele é tributário precisamente da condição histórica de não ter sido engolfado pela tradição. A nossa provocação não vai no sentido que por não ter tido educação formal e ter dado certo, Lula deveria não investir em educação - como fez e relativamente bem, aliás -, mas que a educação que deve ser pensada no aqui-agora precisa ir além do que aquilo que Tradição nos legou - isso para além do mundo das políticas públicas, diga-se de passagem. 

Isto nos ensina muito mais do que, em termos de democracia representativa, não apenas qualquer pessoa possa exercer cargos, mas que fundamento disso é, precisamente, o fundamento dado para o juízo anterior, ideia da superioridade relativa de uma determinada gamas de saberes "teóricos" não existe e isso fica bem mais claro hoje. Essa crença, declarada ou não, a bem da verdade, é o laço profundo entre o "técnico", o apparatchik e o intelectual. O intelectual, enquanto aquele que recusa o mundo das especialidades e do caminho único, não deixa, também, de hierarquizar os saberes ao seu modo - e, no fim das contas, de hierarquizar sua própria posição. Em uma sociedade de redes, sua posição real, no entanto, nunca foi tão frágil.

Precisamos, sem dúvida, reconectar saber e ação para desconectar os dispositivos, mas o intelectual só terá qualquer importância nesse processo quando reconhecer sua desimportância relativa, assumindo certa clandestinidade - o que nada mais é do que reconhecer os escombros do espaço público - e devindo partisan - em outras palavras, sentindo a emoção intensa de destruir o fascismo pela construção da liberdade. Opôr a destruição criativa com uma criação destrutiva pela iconoclastia. Quando o intelectual se perceber tão importante quanto o ribeirinho no debate ecológico - e como isso não é depreciativo, muito pelo contrário -, ele será capaz de saber se mover neste (nem tão) admirável mundo novo e cumprir sua função.




domingo, 2 de outubro de 2011

Massacre do Carandiru: Estado, Exceção e Violência

Antiga Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru
Hoje, o massacre do Carandiru completa dezenove anos. 111 mortos por execução. De repente, o chão sai de cena, alguns defendem a legitimidade do ato, outros preferem apenas olhar o óbvio da pilha de mortos.  O que isso nos diz?


Voltemos ao começo, é preciso relembrar o denominador comum que o pensamento contemporâneo teve a felicidade de estruturar acerca do Estado: trata-se de uma organização intrinsecamente vinculada - seja em seu nascedouro ou em sua existência e conservação - à violência. O "monopólio da violência legítima" weberiano, portanto, não deixa de convergir com a perspectiva schmittiana de soberania. 


O Estado é uma organização antes de mais nada estruturada em uma estrutura axiomática, isto é, em um instrumental discursivo que regula a capacidade de agir dos sujeitos - o que, onde, quando, quem, quanto e como pode fazer x -, o que, se vislumbra o uso da violência de imediato, ao menos a coloca em seu horizonte - e, mais do que isso, na possibilidade do uso da força total, de decidir sobre o genocídio e o assassinato em massa, mesmo quando se trata de um "Estado de Direito", aparentemente obrigado a respeitar um complexo de "direitos".


Um Estado precisa ter a superioridade da força relativa dentro da coletividade à qual ele se refere - e, mais importante do que isso, deve deixar isso claro para os seus súditos -, mas tal poder não reside no uso contínuo dessa força na forma de violência, mas sim na construção imaginária de que ele pode fazer isso a qualquer momento, contra quem lhe ameaçar de forma decisiva. É essa a maior violência do Estado, a psicológica. Por outro lado, a disposição de realizar tal força real - até então exposta discursivamente - é o principal componente latente do Estado - de qualquer espécie de Estado. 


Como nos lembra Giorgio Agamben, em seu O Reino e a Glória, há uma parte de Salò, clássico de Pasolini, em que um dos hierarcas pontifica: a única anarquia verdadeira é a do poder. Nada mais justo. Só se pode usar a violência de forma legítima, mas quem determina o que é legítimo ou não é o próprio Estado, seja em um primeiro ou em um segundo momento - e, no fim das contas, é ele quem vai se julgar. O Estado, mesmo essa fantástica construção jurídico-constitucional contemporânea, só pode responder pelo que fez, por uma questão lógica, caso ele resolva se punir. Embora o argumento da vedação ao autoperdão seja útil - justamente por expôr tal fissura -, a verdade é que ele é a regra: não há segurança, o controle do poder total sempre gira em um vazio, soberano, por uma questão lógica, é sempre absoluto.


O único elemento capaz de realmente controlar o exercício do poder pelo Estado, portanto, é a rebeldia. Não que uma manifestação não possa ser facilmente reduzida a pó por ele, mas sim que ela pode despertar nas pessoas o destemor de sair às ruas e, ainda, um desmedido ato de violência estatal para dissipar uma manifestação pode, simplesmente, fazer com que todos percam o medo [da morte, da violência física]. Se eu deixo de agir como eu preciso para não sofrer violência, no momento em que a violência extrema torna-se constante, imediata e universal, eu não tenho nada mais a perder e ajo como eu quero. Foi precisamente isso que vimos há pouco na Tunísia, quando um vendedor de rua ateou fogo ao próprio corpo disparando a Revolução dos Jasmins.


O Estado precisa capturar toda e qualquer manifestação política que escape ao seu controle e, por isso, nunca deixa de agir assim, mas ela encontra limite quando sua ação pode tornar o medo da morte - e a esperança da vida futura, sua outra face - em algo atual - eis aí, que não pode haver mais medo, posto que este é uma ideia triste passada ou futura - que jamais se revela no presente por impossibilidade lógica -, ao sofrer essa atualização, ele se dissipa, tornando todas as obrigações e condicionantes mera fumaça. 


As construções do passado e do futuro, portanto, servem como o instrumento para o deslocamento da vida necessário ao exercício do poder, criando um vazio no presente - a bem da verdade, no real, o aqui-agora - ao fazer com que o sujeito abra mão de tudo neste instante para que, hipoteticamente, não seja punido ou possa viver no futuro - mas o amanhã, por sua condição principal de existência, jamais chega, o que torna a condição de existência do exercício do poder estatal que aqueles ao qual ele se refere, vejam só, abram mão de viver.


Se uma manifestação verdadeiramente libertária só é a afirmação, por diferentes modos, de que o rei está nu e que a vida só pode ser vivida aqui e agora - como os manifestantes espanhóis que reivindicam uma "democracia real já!" fazem -, o Estado não pode fazer outra coisa senão tentar neutraliza-la - e é aquilo que ele sempre tenta fazer, também por diferentes vias -, mas a mágica reside de que a gradação dessa tentativa de neutraliza-lo também pode acabar catalisando-o como exposto acima: a concretude e a universalização da ameaça pode tornar a sustentação da ordem impossível. É essa tensão permanente que se mostra na luta pela liberdade.


O sistema prisional, por sua vez, é literalmente um inferno. A Teologia sempre foi um discurso abstrato voltado para o domínio em um sentido bem concreto. Os infernos nunca deixaram de ser uma metáfora para a construção de uma doutrina de punições bastante terrena - e o sistema punições construído ao longo do tempo até resultar no moderno sistema penal visa à aplicação, em doses individuais, do exercício do poder pelo Estado, mantendo uma relação de mútua interferência com a individualização que é marca da sociedade contemporânea.


A antiga Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru, era o mais perfeito exemplo disso em nossa sociedade, encrustado lá na zona norte de nossa maior cidade. Seu processo de  superlotação corresponde aos finais dos anos 70 e 80, sendo mera consequência do modelo de desenvolvimento adotado pelo país nas décadas anteriores: o Estado autoritário era o fiador da aliança entre o coronel e o capitão da indústria, deixando de fazer uma reforma agrária não só para agradar o primeiro, mas também para abastecer o segundo com mão-de-obra barata - embora esse modelo fosse, ele próprio um entrave para a industrialização na medida em que não contemplava, efetivamente, a construção de um mercado interno. A parcela não absorvida desse fluxo migratório - ou mesmo mal-absorvida -, abalava a ordem social posta, o que justificava uma reterritorialização por parte do Estado: era preciso confina-los, já que eles não ficavam inertes, aqueles dispositivos de ordem não faziam sentido para eles.


É esse o grande contingente humano que constituía aquela população prisional, o homem médio do nordeste, o fluxo sobrecodificado pelo despotismo local dos coroneis, deglutido agora pela máquina capitalista que o empurrava a milhares de quilômetros de sua terra natal. A incapacidade do capitalismo tupiniquim nascente em absorvê-lo, o que é perfeitamente natural, gerava uma situação de caos social com o crescente aumento da criminalidade, a violência que escapa ao controle do Estado e é identificada em suas várias formas condutas possíveis.


O resultado disso era uma cadeia superlotada, cheia de presos contaminados com o vírus da Aids e possuidores de todo tipo de privação concebível. Uma hora explodiu, os presos se deram conta que não tinham, nem nunca tiveram, mais nada a perder. E a debilidade estatal, depois de anos ignorando o problema, reagiu com uma ordem de conter a qualquer custo a rebelião, resultando em um verdadeiro extermínio. O Carandiru tornou-se um paradigma de situação limite na qual o Estado (e aqui, de Direito) revela sua verdadeira face: o Estado interveio para capturar aquela manifestação e usa-la de exemplo para os outros milhares de presos pelo país, sob a construção de que não é conosco - cidadãos de bem - que aquilo dizia respeito, mas com os bandidos.


Se por um lado, o Estado conseguiu certo êxito na retórica maniqueísta que ele assumiu para legitimar aquele ato de exceção junto à opinião pública, essa vitória foi relativa: a atualização da ameaça, isto é, a transformação da expectativa de morte em eliminação concreta e imediata produziu um abalo no sistema prisional que, em último caso, constitui-se em um abalo à própria ordem: é desse evento que surgiu o Primeiro Comando da Capital (PCC), organização pára-estatal que não é capturado pelo poder soberano - muito pelo contrário, consiste em uma ameaça concreta para ordem, uma vez que já pôs em xeque a superioridade relativa de força real do Estado - e mesmo que a revolta tenha sido debelada, isso tanto menos do que uma derrota, mostrou-se um recuo tático da organização, uma vez que ela continua existindo e se expandindo.


Por sua vez, o comandante da missão, o falecido Coronel Ubiratan - assassinado em um possível crime passional -, foi inocentando da ação, enquanto o ex-governador paulista, Luiz Antônio Fleury Filho até hoje se exime de sua responsabilidade.


O episódio do Carandiru é, portanto, paradigmático. De um lado ele ilustra que o Estado, seja ele de qual espécie for, se estrutura mirado, explícita ou implicitamente, para um horizonte no qual ele pode - e vai - sim usar de força letal e total, mas que, por outro lado, isso encontra limites reais que não estão no aparato judicial capaz de "julgar" o Estado, mas sim na possibilidade de sua intervenção revelar que a latência genocida é não apenas real como também universal e imediata - uma espada não está mirada para o nosso pescoço, ela simplesmente pode se movimentar contra o nosso pescoço aqui-agora, sem distinção alguma entre nós todos.  Paradoxalmente, o Estado não pode abrir mão de capturar aquilo que lhe escapa, pois, do contrário, todos perceberiam o óbvio: que nem sempre é evidente, mas é sempre revolucionário.

O Estado é, portanto, uma modo de organização política recente, vinculada ao modo de organização econômica e coletiva da modernidade - ou seja, à ascensão do Capitalismo  - que se configura como a forma final e acabada do aparato teológico-político: sua fundação profunda reside na entificação da morte e sua elevação à simétrico oposto da vida, na construção de um conceito de temporalidade linear e progressivo e, por fim, na virtualização da vida - deslocando sua existência do real a todo momento, condicionando-a ao que foi e ao que pode ser, o que impede a concretização de sua intensidade. 


O fato dele poder nos - e não apenas aos outros - eliminar física e historicamente é, precisamente, o porquê devemos nos livrar dele mais rapidamente. Isto, no entanto, não é o seu fim, mas sim  uma colateralidade de sua existência - ela não se volta a produzir mortos, mas sim a enfileirar escravos. No dia em que conseguirmos fazer a nós mesmos e aos nossos semelhantes sentirem, como Frei Tito, que é melhor morrer do que perder a vida, estaremos finalmente livres.


Se o Estado brasileiro não caiu por conta do Carandiru é porque  ele conseguiu legitimar, relativamente, o ato assassino que em prática, mas se, por outro lado, a ordem nunca mais foi tão firme, significa que aquela vitória foi parcial, na medida em que a forma como ela se deu foi responsável por uma parcela significativa da população conseguir sentir, mesmo que remotamente, do que se trata o Estado.



   

sábado, 1 de outubro de 2011

A Livre-Docência de André Singer: Lulismo, Socialismo e o Novo Brasil

Ontem, o Professor André Singer conquistou sua livre-docência - por unanimidade e com nota máxima - pelo Departamento do Ciência Política da FFLCH com um trabalho que é, na verdade, uma compilação do seu já clássico Raízes Sociais e Ideológicas do Lulismo com outro artigo seu, este bem mais recente, A Segunda Alma do Partido dos Trabalhadores e algo mais (ainda estou caçando o texto final do trabalho). A banca de arguição, presidida por Fernando Limongi, contou com a presença de Luiz Carlos Bresser-Pereira, Maria Victória Benevides, Leda Paulani e Francisco de Oliveira - e, como não poderia ser diferente, gerou um belíssimo debate.

Singer é, sem dúvida, dos observadores mais atentos do Brasil atual. E o fato de ser um intelectual militante não prejudica em nada sua análise, ao contrário, só lhe proporciona uma visão privilegiada do Brasil contemporâneo. O centro gravitacional do trabalho de sua tese gira em torno do realinhamento eleitoral que ocorreu no Brasil nos últimos anos, fenômeno que ele credita às transformações socioeconômicas brasileiras promovidas pelas politicas do Governo Lula, cuja pedra de toque teria sido a ascensão política do chamado "sub-proletariado" no período - cujas implicações fazem se sentir dialeticamente (no sentido marxista) na formulação de novas políticas.

O realinhamento do modelo de Singer é explicado por gráficos que comprovam a mudança da base social petista - deixando de ser um partido dos trabalhadores profissionais e de pequenos burgueses instruídos para se tornar um partido votado por proletários, "sub-proletários" e mesmo pelo lúmpen, tornando-se um partido dos pobres. Em suma, é como se as bases sociais do eleitorado de Lula (em 2006) e Dilma tenham se tornado parecidas com as que elegeram Collor em 1989 - inclusive porque a ascensão junto as categorias de renda mais baixa não veio acompanhada de uma ascensão nas categorias de renda mais alta. Singer observa como esse fenômeno alterou o equilíbrio de forças entre os espectros políticos, alterando por completo a disputa política no país.

Na arguição de ontem, ele começou por estabelecer a diferenciação entre o fenômeno de Lula e o de Vargas em resposta à fala de Bresser, o que é uma obviedade tremenda, mas é preciso pontuar. Passado isso, tivemos os bons questionamentos de Maria Victória Benevides acerca daquilo que Singer considera por "conservadorismo social" do "sub-proletariado", isso seria uma marca "ideológica" ou uma estratégia de sobrevivência? Esse questionamento é bastante válido, uma vez que ele é uma das frestas da tese de Singer - o que demonstra, precisamente, certas insuficiências do racionalismo em tentar explicar fenômenos de sujeição voluntária (ou, mais especificamente, de investimentos do desejo, e vice-versa, no campo social), descambando para alguma forma de moralismo. 

Singer sustentou o caráter ideológico desse conservadorismo social: o que em outras palavras reforça o paradoxo de, apesar de considerar certos dados reais - e não abstrações ideais, como fazem, infelizmente, muitos dos nossos marxistas - para analisar a a disposição das forças políticas antes e depois do Governo Lula, acabar tangenciando a causa material de tanto, sem adentrar nela, superestimando a importância da consciência (ou a falta dela) no processo histórico e, inversamente, subestimando o desejo - o que alude a uma contradição em termos, na qual o posicionamento dos trabalhadores (e "sub-proletários") é descrita com precisão, mas o próprio modo social que ele determina como tal acaba sendo idealizado, por ignorar a importância do desejo (e do recalque) na constituição do processo histórico. 

Há muito desse "conservadorismo" que é em certa medida perversão do desejo gregário e há aquilo que, de fato, é a própria resultante da pragmática do ser humano posto frente a frente da escassez radical de recursos. A primeira parte do fenômeno não deixa de ser uma construção do poder soberano - ainda que a consciência seja apenas uma variável dele, nem a mais importante - e a segunda parte é uma colateralidade. Uma parte da história é política, a outra socioeconômica, mas o tal conservadorismo social é na verdade um rótulo que reduz uma ampla gama de fenômenos diferentes, nem sempre conexos. 

Na bela arguição da professora Leda Paulani (FEA-USP), dois pontos centrais foram levantados, a saber, as dúvidas sobre a sustentabilidade econômica dos avanços do governo e, por fim, um questionamento sobre o próprio tamanho desses avanços, uma vez que a suposta distribuição funcional da renda pró-trabalho pode sofrer uma objeção se considerarmos os autônomos entre os trabalhadores - o faria a tese de Singer de que o Governo Lula produziu uma soma zero, fazendo o Trabalho ter, ao final de seu mandato, a mesma importância relativa do que no começo do Governo FHC -, o que faria com que o "reformismo fraco" que Singer atribui ao Lulismo fosse, na verdade, um reformismo neoliberal. 

Singer, refutando o otimismo que Leda lhe atribuiu - e, de fato, não acho que ele seja propriamente otimista - ficou titubeante quanto a questão das séries históricas, já que ele não tinha considerado  a possibilidade de inclusão da renda dos autônomos como renda do trabalho - o que diminuiria o impacto do crescimento da renda do Trabalho, deixando seu desenvolvimento quase que em nível estacionário. Cá do nosso lado, é necessário considerar que a renda dos autônomos representa uma variável econômica importante, mas consideramos que ela não é propriamente renda do Trabalho, por menor que seja um meio de produção - e seu referente grau de controle de mercado -, a propriedade dele põe o sujeito em outra condição social em relação a quem não é proprietário - em suma, mesmo que o motorista de uma família de elite ganhe mais do que um taxista, eles estão condicionados a um regime de controle diferente, o que os põe em classes sociais diferentes.  

Sobre a questão da estabilidade do processo de desenvolvimento econômico, Singer reiterou que seu trabalho não buscar focar exatamente nesta variável, mas sim no fato de que o Lulismo, pelo modo como se articula, se afigura como um instrumento político capaz de dirimir crises capitalistas com medidas ligeiramente anti-capitalistas, uma vez que dialeticamente, a crise seja inerente ao capitalismo - e reforçou, por fim, que o reformismo lulista é social, uma vez que mesmo que num grau fraco, ele não cria uma tendência de aumento da exploração do Trabalho pelo Capital como, por exemplo, propõe o projeto do PSDB.

Chico de Oliveira, com a sinceridade que lhe é peculiar, levantou como objeção à tese de Singer sua própria tese de hegemonia às avessas da classe trabalhadora - reavivando a polêmica que os dois estão travando há algum tempo na Academia -, o que, trocando em miúdos, seria o seguinte: é como se a classe trabalhadora tivesse chegado ao poder e, por meio dos seus representantes, estaria atuando para o desenvolvimento deste tipo de Capitalismo por meio da capacidade de investimento que os fundos de pensão possuem. 

A resposta de Singer, aqui, foi categórica: é elementar, dentro do pensamento marxista clássico, que a classe trabalhadora, dialeticamente, faz expandir o mesmo Capitalismo com o qual ela estabelece tensão. Mais do que isso, que a participação dos fundos de pensão no desenvolvimento do capital privado brasileiro, na verdade, só pode ser devidamente analisado nos momentos de crise, quando a influência da classe trabalhadora - enquanto sócia imprópria desse capital - força que seus gerentes tomem medidas anticapitalistas como vimos no auge da crise de 2008. Só faltou Singer concluir o óbvio: só há Trabalho - logo, trabalhadores - porque há Capital, isto é, o Capitalismo é marcado, antes de mais nada, por uma clivagem do processo produtivo que estabelece uma cisão absoluta entre a produção do valor e sua realização, causando um permanente estranhamento entre trabalhadores e o produto de sua atividade. 

Podemos dizer, à maneira de Marx, que a condição do trabalhador é sim contraditória (em sentido antagônico), pois em seu núcleo ontológico reside a negação dele mesmo em virtude de como se desdobra a práxis humana - proposição com a qual não concordamos inteiramente, uma vez que não admitimos o negativo enquanto elemento constitutivo do real, o que, em apertada síntese, seria o mesmo que dizer que Marx acertou por linhas tortas: a identidade subjetiva de trabalhador alude a uma clivagem no sistema produtivo que lhe é anterior e a qual ela serve e que é, na verdade, insustentável em termos reais - o sujeito proletarizado ao combater o sistema que ajuda a expandir o faz em circunstâncias diferentes, a primeira, escapando aos mecanismos (identitários) de captura e a segunda, quando não consegue fazê-lo. O Capitalismo, em outras palavras, é o sistema que afirma ontologicamente o trabalhador, do mesmo modo que o sistema de produção antigo fazia com o escravo.

Seja como for, mesmo discordando do método, concordamos com as linhas gerais da conclusão de Singer acerca da falácia contida na tese da hegemonia às avessas e, também, no que toca à própria condição prática do trabalhador em meio à História - em outras palavras, uma medida  tomada por trabalhadores, a favor de si mesmos, dentro do sistema capitalista consiste, inequivocamente, em uma medida anticapitalista, pois subverte a própria estruturação do domínio pela inversão de direção dos mecanismos deste sistema econômico (uma versão enfraquecida do que o próprio Marx propunha, aliás...).

No entanto, o conceito de "sub-proletariado", criado pelo pai de André, o Professor Paul Singer, também nos parece questionável: se as classes sociais são grupos, dentro da sociedade, determinadas pela função que elas ocupam em relação à produção - embora relevemos a questão da consciência a um segundo plano -, então o sub-proletariado não existe, ele é como se fosse uma foto que tenta explicar o processo (acidentado) de formação do proletariado brasileiro. 

A importância de pontuar isso vai para além de um mero preciosismo terminológico, ela visa estabelecer um norte que contemple o processo de produção da própria classe trabalhadora como tal para, assim, compreender porque mesmo debaixo do choque dos governos FHC, uma classe trabalhadora nacional propriamente atinge uma massa relevante e não só o PSDB termina derrotado como, antes mesmo, o paradigma de socialismo petista  (socialista europeu ocidental) se esgota - o que não quer dizer que a Carta ao Povo Brasileiro seja nem de longe a descoberta da roda por parte da hierarquia petista, mas sim que houve a percepção de que o modelo anterior não se conectava com a demanda que buscava encampar e, na falta de algo melhor, a pragmática viria a calhar, pelo menos temporariamente.

Ao nosso ver, não há "ascensão do sub-proletariado", mas sim o surgimento do proletariado brasileiro como modo histórico e social, uma vez que a população camponesa incorporada pela industrialização tardia, finalmente se assenta (ainda que muito mal) na urbe estabelecendo um vínculo efetivo com o sistema de produção capitalista e assim se assumindo como parte dele. Isso é efeito de um efeito dominó inciado por Vargas e que nem mesmo o projeto de FHC foi capaz de deter, ao contrário, terminou por molda-lo, ainda que colateralmente. 

A chegada ao poder do PT só foi possível porque, de alguma forma, se percebeu a impossibilidade de se levar a cabo o modelo socialista ocidental para o Brasil, pois isso não se constituía em um movimento real do e pelo próprio proletariado nacional. A Carta ao Povo Brasileiro foi o movimento que pôs, por vias tortas, fim ao mais pesado dessa dissonância e essa talvez seja a minha grande discordância quanto ao trabalho de Singer - e que eu externei pessoalmente para ele, há mais ou menos um ano.

A colocação final, de Rafael Limongi, foi bastante fraca. Levantar uma objeção de que a base social do petismo não mudou porque hoje o PT é votado, quase que de forma uniforme, por eleitores de todas as classes, não sendo propriamente o "partido dos pobres" é um equívoco, porque Singer, como ele próprio respondeu, estruturou sua análise na comparação de como era o eleitorado petista em 1989 e o que ele se tornou agora: se antes o eleitor petista era, reiteramos, o trabalhador profissional e o profissional liberal, hoje, o partido tem o grosso da sua votação entre os setores do "sub-proletariado" e, mesmo, do lúmpen, o que marca uma inequívoca alteração relativa da constituição social da base do partido.

Por fim, ao nosso ver, os méritos do trabalho de Singer repousam precisamente no fato de que os erros e equívocos nele presentes - e não são poucos - são eminentemente científicos, isto é, deixam as portas e janelas abertas para a contínua construção da obra, não se rendendo, pelo menos não metodologicamente, aos becos sem saída que o caminho fácil da ortodoxia produz. Ainda mais levando em consideração que os dados, relações análises que ele traz à baila sejam, sem dúvida, os itens fundamentais para a compreensão do Brasil contemporâneo, por mais que seu autor se fie por demais ao paradigma racionalista, assentado sobre instrumentais da filosofia alemã do século 19º e sua insistente sobrevalorização da consciência. 

Nesse sentido, a obra de Singer é peça essencial, embora mereça ser relida considerando um elemento que surge nela a todo momento na forma de uma sombra misteriosa: o desejo e sua relação de mútua afetação com o social, ou seja, a própria produção inconsciente coletiva e sua relação com um dos maiores abalos já vistos em nossa história, no qual um fenômeno econômico, fruto de políticas específicas, pela primeira vez ameaçaram o equilíbrio social estamental, dando ensejo para mudanças mais profundas do que pode supor nossa vã filosofia.