sábado, 10 de dezembro de 2011

Montanha Russa

Manifestantes nas Ruas
Enquanto a agonia do Euro prossegue no Oeste, Moscou viveu um dia agitado hoje: milhares de manifestantes marcharam nas ruas da capital russa contra as possíveis (e plausíveis) fraudes nas últimas eleições parlamentares. Também estavam presentes outros tantos manifestantes pró-Putin, além de um contingente imenso de policiais e forças de segurança, isolando o Kremlin. Não que fraudes não sejam uma comuns naquele país: em 1996, até as pedrinhas da rua sabem que Boris Yeltsin, que em 1993 rasgou a Constituição e jogou tanques contra o Parlamento legalista, venceu o comunista Gennady Ziuganov em uma enorme fraude e que a tônica dos anos seguintes, sob Vladimir Putin, era do esmagamento contínuo das vozes dissonantes, com direito a supressão de partidos e com trapaças  mais ou menos descaradas nas urnas. No entanto, as medidas putinistas de combate aos efeitos da crise, sem dúvida, trouxeram à tona uma revolta considerável.

Cerco ao Kremlin
O resumo da ópera das eleições do último dia 04 é simples: o Partido Rússia Unida - uma espécie de PMDB russo comandado pela figura pessoal e personalista de Putin - perdeu a maioria constitucional e ficou, em tese, com apenas metade das cadeiras na duma estatal - a câmara dos deputados local -, mas ao que tudo indica, esse resultado se deve a fraudes grosseiras que escondem uma queda de votos ainda maior, talvez até uma derrota daquele partido para os comunistas. A metade das cadeiras serviria para garantir a governabilidade do país nos termos putinistas, coisa que uma "maioria relativa" não daria conta. Putin e Medvedev, seu fantoche presidencial, certamente não esperavam por essa derrota, daí os gestos desesperados e acintosos. Agora, só resta mobilizar sua militância e partir para o enfrentamento nas ruas, enquanto que, por outro lado, se manobra com as forças de segurança e de espionagem, em um movimento que deve endurecer o autoritarismo local. 

Mais caminhões militares
As manifestações por parte do possível vencedor das eleições russas, o Partido Comunista da Federação Russa (PCFR), são, até o presente momento, tímidas. É provável que tenha acontecido novos acordos de bastidores com o Kremlin, como é comum de Ziuganov. Aliás, em um primeiro momento, convém esclarecer que o atual Partido Comunista russo não é herdeiro real do velho Partido Soviético, uma vez que grande parte dos burocratas da URSS se converteram em oligarcas - bilionários em dólar que enriqueceram por terem surrupiado as velhas estatais soviéticas e as terem inserido, como propriedade suas, no mercado global - ou em apparatchiks do Rússia Unida -, portanto, resta ao PCFR a posição de pastiche, mera alegoria de saudosistas dos tempos soviéticos, todos unidos por um discurso nacional-popular, que apela para o estatalismo, o tradicionalismo e, até, para o cristianismo ortodoxo (!).

Ziuganov, eterno líder do PCFR, comporta-se como um príncipe herdeiro de monarquia derrubada: sonha com a volta dos velhos tempos, o que irremediavelmente lhe devolveria o poder que é seu "por direito". No entanto, é óbvio que se a velha União Soviética não tivesse sido implodida, não seria ele o secretário-geral ou um burocrata de segundo escalão ao menos. Ele é só um líder demagogo que reconstruiu em torno de si o saudosismo soviético depois que Yeltsin permitiu a volta de uma legenda "comunista" na Rússia - uma vez terminado o perigo do verdadeiro partido ressurgiu. A oposição que Ziuganov fez para Yeltsin e, depois, para Putin é tão ambígua que nem parece ser concreta. Como agora. 

Declaram os comunistas russos, em todo o seu ecletismo e ostentando velhos quadros de Stalin, que desejam um "modelo chinês" para seu país, mas nos parece claro que se não há muitos chineses na Rússia, também não há muitos stalinistas na China. O eleitorado russo, frustrado com os rumos do salvacionismo putinista e suas medidas de repasse dos custos da crise para os pobres, está desorientado, mas também não está animado com o PCFR. Outros partidos que também cresceram nas últimas eleições, como o Rússia Justa (social-democrata e filiado à Internacional Socialista) também parece ter vínculos demais com Kremlin e projetos de menos. Já o Partido Liberal-Democrata, do tragicômico Vladimir Zhirinovsky, é voto de protesto. A tendência eleitoral aqui é a mesma de outros lugares pelo mundo, punição das forças governistas por erros que cabem a todo o sistema partidário, diminuição do comparecimento nas urnas e desilusão com a democracia representativa - sem, no entanto, a organização de novos modos de intervenção política.

"onde está o pecado, eles riem" -- um tanto ortodoxo, não?
Por ora, de todos os Brics, a Rússia foi a mais afetada pela crise global e isso não parece ser aleatório. O Rússia Unida é, aí sim, o velho PCUS, Igreja velha de crença renovada, ortodoxamente voltado à adoração de um capitalismo que, hoje mais do que nunca, vive de pura fé. A incapacidade dele resolver os três problemas centrais da Rússia desde a agonia do tzarismo, é patente: restam aí a questão nacional - o genocídio cultural das minorias não-russas, sobretudo as não-eslavas, o que se agravou depois do fim da URSS, embora nela a questão ainda estivesse em aberto -, a questão da desigualdade - que passa da aristocracia imperial para os oligarcas contemporâneos, passando pelos velhos burocratas 'comunistas' - e questão da liberdade - sempre fagocitada pelas reterritorializações que representam o engessamento da máquina despótica ortodoxa. Nisso, putinistas fracassam tão fragorosamente quanto os ultra-liberais dos anos 90 ou os bolsheviks. Se livrar da linha rígida, seja da política ortodoxa ou da religião stalinista, por meio de linhas de fuga mundialistas, como o trostskysmo - apesar de sua crítica moralista - tentou a seu tempo, nunca deixou de ser a melhor saída para os russos.

Uma possível implosão da Rússia, junto com o destino nada animador do Euro - à deriva no mar de hesitações, recuos e boçalidades infinitas do eixo franco-germânico - podem marcar um agravamento seríssimo do cenário europeu; as décadas de paz da Europa Ocidental podem estar chegando ao fim com a implosão do europeísmo, ao mesmo tempo em que na Rússia, Putin e os seus estão entrando em uma espiral de deslegitimação que podem fazê-los perder o controle das coisas mais rápido do que se supõe no Ocidente - para forças ainda desconhecidas, mas que podem perfeitamente passar por fora, e a despeito, do decrépito sistema partidário russo. Isso, aliás, acende uma luz amarela para China e Brasil, sobre a qual voltaremos a falar tão logo. Enfim, próximos dos vinte anos do fim da União Soviética, ainda estamos às voltas com os ecos do fracasso enormíssimo da Perestroika.

*Fotos do meu amigo Lucas Barducco, que foi testemunha ocular, auditiva e olfativa das manifestações russas de hoje.

7 comentários:

  1. "A tendência eleitoral aqui é a mesma de outros lugares pelo mundo, punição das forças governistas por erros que cabem a todo o sistema partidário, diminuição do comparecimento nas urnas e desilusão com a democracia representativa - sem, no entanto, a organização de novos modos de intervenção política."

    Perfeito:

    "O velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer" - Gramsci.

    Quem diria que um comunista italiano que morreu em 1937 resumiria os primórdios do século XXI com uma única frase.

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  2. São épocas parecidas (a nossa e a de Gramsci), Luis, crises apontadas como de "crescimento" de um modelo - diria, trata-se de uma colateralidade da perspectiva moderna de tempo, a linha reta e progressiva, que na prática, produz um efeito circular: as coisas terminam por girar em torno do Mesmo.

    O que há de novo aqui em relação ao tempo de Gramsci são as especificidades do capitalismo atual, tão tecnologicamente avançado que prescinde da indústria, do salário e, mesmo, dos lucros: tudo torna-se renda e da estrutura em rede, pós-industrial, é possível achar o calcanhar de aquiles. Nesse sentido, o devir maquiavel de Gramsci nos pode ser útil, embora a luta pela hegemonia precise ser repensada em outros termos.

    Para além de todo entusiasmo com esse sinal de vida da humanidade, na forma de todas essas mobilizações, é preciso construir o modo de organização capaz de enfrentar isso. Isso me preocupa. Não é questão de tombarmos vítimas da ansiedade com um futuro (que nunca chegará), mas é preciso buscar devir partisan; temos de criar meios concretos e materiais para resistir, enquanto minoria e na indignidade, contra a onda que pretende nos engolfar.

    Esse vazio tático, dos movimentos multitudinários que vemos, é problemático porque suscita certa passividade - uma postura ativa exige o calculo da consequencialidade das pequenas ações. É preciso refletir a política pelo viés da tecnologia, uma vez que ela não deixa de ser uma técnica - no sentido clássico -, e pensar mais e mais em como intervir na realidade - e isso pode ser um meio de aproximar o pensar da ação, construindo uma práxis. O filósofo precisa devir estrategista, o militante precisa devir partisan.

    abraços

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  3. Nunca pensei dessa forma, Hugo. Pelo menos na época de Gramsci havia gente pensando em outras formas de organização da sociedade, ou estou errado?

    Sobre o avanço tecnológico, é isso aí - o primeiro parágrafo do manifesto SCUM já evocava a 'automatização completa', para que os humanos pudessem se dedicar ao mínimo de trabalho possível. No entanto para que o sistema funcione, é necessário que todos trabalhem, mesmo sem produzir nada.

    As 'pequenas ações'... ah é nisso que eu deposito minha esperança. Dos caracóis zapatistas no México às fábricas ocupadas na Argentina passando pelas cooperativas de Mondragon na Espanha, o novo existe. Só está obscuro pelas nuvens do capitalismo video-financeiro.

    Outro abraço!

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  4. Sim. E pequenas ações - ou investimentos em nível molecular - não significam abrir mão de melhorar as coisas em um nível global, mas sim escapar à ilusão dos grandes números, que desconsidera sempre o singular, o sensível - de repente, não mais homens, estatísticas -, o que alude a um salvacionismo que só pode produzir um megalomaníaco. Do concreto para o sonho, do singular para o "todo". Acho que é isso.

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  5. Uma pequena correção - "pelo menos na época de Gramsci havia MAIS gente pensando em outras formas de organização da sociedade"

    E é "obscurecido", carambolas... ^_^

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  6. Gostei muito da sua postagem. Para quem não conhece a situação russa, como eu, foi um belo resumo. Abraço.

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