sábado, 17 de setembro de 2011

O Fechamento da PUC: Festa, Luto, Anomia

Carnaval em Roma -- Lingelbach
Ontem, a PUC de São Paulo esteve fechada, com todas as suas atividades suspensas e a comunidade devidamente advertida para não entrar no campus. E isso não foi, pasmem, por conta do luto decretado por Nadir Gouvêa Kfouri, a pessoa mais importante da História daquela Universidade, mas sim porque o Reitor, por meio do ato 127/2011, determinou que as atividades fossem interrompidas para que não acontecesse uma festa programada para dentro do campus. 


Sobre Dona Nadir, na última quarta-feira, poucas horas depois de sua morte, houve a decretação de um luto de três dias, sem maiores repercussões e, para falar a verdade, sem os préstimos das devidas homenagens - as faculdades de Ciências Sociais e Serviço Social pararam porque quiseram. Nem a Faculdade de Economia e Administração, tampouco a Faculdade de Direito pararam.  A Reitoria, portanto, limitou-se a dar a notícia da morte.

Festas ocorrem, como historicamente sempre ocorreram, no campus de Perdizes. O argumento de emergência empregado pela Reitoria, portanto, só não soa terrivelmente falacioso para seus próceres ou, quem sabe, para calouros desavisados. É claro que a livre gestão do espaço Universitário - e dos corpos - não interessa ao poder soberano.


É claro que a festa da Cultura Canábica em questão poderia ser questionada - não tanto por sua conotação, como nos lembra a decisão recente do próprio Superior Tribunal Federal sobre a Marcha da Maconha -, mas sim pela incompatibilidade de estrutura da PUC com ela, mas  daí a chegarmos à suspensão arbitrária de TODAS as atividades - e dos direitos, uma vez que foi sim uma medida de exceção -, há uma distância muito grande, sobretudo quando a decisão se volta para a festa em si.


Pior de tudo, a atual gestão da Reitoria, que se demonstra incapaz de dirimir democraticamente uma festa dentro do campus porque não possui qualquer capacidade de interlocução junto à comunidade. Ela ainda usou o episódio de forma oportuna para condenar a realização de qualquer tipo de festa lá dentro, invocando um artigo do atual Regimento Geral - produzido bem longe da Comunidade, sob a batuta da Mantenedora -, que, a bem da verdade, é, como não poderia ser diferente, letra morta.


Agora, está sendo produzido um álibi importante a partir da festa não realizada e medidas que o atual reitor jamais escondeu sua predileção por aumentar os muros da Universidade, para além das mensalidades já proibitivas, defendendo agora catracas no campus - como se a tal festa pudesse ser evitada por elas caso fosse o pandemônio que a própria reitoria alegou - e mesmo medidas de imunização e higienização.


A partir daí, nos lembramos dos velhos Deleuze e Guattari quando eles nos dizem que "A história universal não é senão uma teologia, se ela não conquista as condições de sua contingência, de sua singularidade, de sua ironia e de sua própria crítica”. E a profunda ironia do campus não ter tido suas atividades suspensas em homenagem a Dona Nadir e sim para impedir sua festa é pura ironia, o que não é, de forma alguma, coincidente, mas perfeitamente coerente entre si.


Ainda assim, não se pode deixar de notar o curioso efeito gerado pela proximidade das datas, o que expõe a ferida de forma pungente. Mais surpreendente ainda é lembrar que Giorgio Agamben, em seu magnífico Estado de Exceção, escreveu um capítulo, precisamente o quinto, que se chama "Festa, Luto, Anomia" no qual ele, buscando desvendar as origens do Estado Exceção, chega ao instituto do Justitium, a suspensão de direitos, e não ao instituto da ditadura, como os teóricos da Exceção, a exemplo de Schmitt, sempre buscaram vincula-la.


Depois de ter chegado às suas raízes remotas no fenômeno do Justitium, ele chega até à transformação do significado daquele instituto - que servia para dirimir os tumultos podendo ser posto em prática por qualquer cidadão -, nos tempos do Império, no luto público resultante da morte do Imperador.


A formulação na qual Agamben chega para explicar o nexo entre essas duas mudanças é simples: a relação aparentemente improvável entre o mecanismo republicano de suspensão dos direitos e o luto público encontram nexo no fato de que o Império é marcado, justamente, pela confusão gradual entre a Auctoritas - prerrogativa do Senado da República em ratificar e legitimar as decisões do Povo reunido em comícios - e Potestas - o Poder - na figura do Imperador. 


Uma vez que Vida e Direito passam a se confundir, a morte do Imperador é a causa do tumulto, uma vez que nele, a vida privada e pública se confundem, transcendendo a ambas, revelando o secreta solidariedade entre direito e anomia.  É esse fenômeno que explica o desenvolvimento, em sentido contrário a si mesmo, de festas como a Antestérias e a Saturnália no mundo antigo até desembocar no Carnaval e no Halloween de hoje, nas quais a ordem é posta para baixo:


"As festas anômicas indicam, pois, uma zona em que a máxima submissão da vida ao direito se inverte em liberdade e licença e em que a anomia mais desenfreada mostra sua paródica conexão com o nomos: em outros termos, elas indicam o estado de exceção efetivo como limiar da indistinção entre anomia e direito. Na evidenciação do caráter de luto de toda festa e do caráter de festa de todo luto, direito e anomia mostram sua distância e, ao mesmo tempo, sua secreta solidariedade" (Estado de Exceção, Cap. 5, p. 110)
E o fato é que o dispositivo anulou tanto o luto, de forma comedida, quanto a festa, aí com certo escândalo. Não só, a suspensão disso, volta-se para um horizonte de legitimação de uma suspensão permanente. O Carnaval, enquanto paródia, marca a suspensão das obrigações por meio de um desligamento do mecanismo identitário, a Exceção enquanto realidade político-jurídica, marca a suspensão dos direitos subjetivos e fundamentais por um reforço dos mesmos e de tantos outros dispositivos. Aos dispositivos posto em funcionamento não interessa que haja subversão nem ao mesmo enquanto paródia porque eles reconhecem, de modo perverso, o potencial libertador disso.


No cerne da questão está como a aplicação da Exceção não contradiz o Direito e, mais importante de tudo, como isso volta-se a todo tempo, mais hoje do que na velha Roma ainda que também, ao desfazimento da possibilidade da plebe fazer-se sentir e assumir-se como multidão, isto é consciente de ser coletivo e simultaneamente singular, o que é enunciado como tumultus com o intuito de ser debelado - ainda mais se considerarmos o potencial revolucionário de assumir a polifonia própria do Carnaval à prática política, como nos lembram Antonio Negri e Michael Hardt no belíssimo Multidão (p. 271 a 274).


Retornando ao caso concreto, a mera lembrança protocolar do desaparecimento de Nadir Gouvêa Kfouri e a maneira oportuna como foi utilizada a proibição da festa da Cultura Canábica (que se tinha ou não de ser proibida não vem ao caso, mas certamente o foi pelos motivos e com os fins errados) estão intimamente ligados e se juntam dentro de um processo de agravamento do Estado de Exceção em que a PUC-SP se encontra desde que a Igreja resolveu ingerir em seus assuntos internos, sob os auspícios do álibi financeiro, há sete anos atrás.



4 comentários:

  1. Gostei muito Huguinho!
    Em especial pelo fato de vc ter desenvolvido a parte do Agamben que eu tinha ficado com uma puta preguiça de fazer esse caminho ontem e acabei indo pelo viés mais fácil e rápido do Lira Filho mesmo ... heheheh

    Abração!

    Ivan de Sampaio
    Twitter: @IvandeSampaio
    Blog: http://www.desmontadordeverdades.blogspot.com/

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  2. Obrigado, Ivan, quando me deparei diante desse turbilhão, a primeira coisa que me surgiu foi, me deixando quase em choque, é como isso se encaixa quase como uma luva no Estado de Exceção de Agamben e em toda discussão que Negri e Hardt realizam em paralelo, concordando e discordando bastante em alguns pontos chaves. Claro que a coincidência disso com capítulo 5 do Estado de Exceção e com a análise negri-hardtiana do Carnaval é assustadora.

    abração

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  3. Essas coisas pitorescas que acontecem na Puc vão ficar na memórica!...
    Mas aconteceu no mesmo dia algo talvez ainda mais pitoresco: como a Puc estava fechada a mestranda Marina defendeu a dessertação dela no bar! Teve professor leitor, foi registrado em ata e tudo! Eita Puc...

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  4. Espero que fiquem na memória mesmo, Celião, porque o intuito me parece ser fazer com que elas não sejam lembradas. E defender uma tese de mestrado num bar, a julgar pelo estado de coisas em que vivemos, me parece o mais correto.

    abração

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