segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

A Lei de Mídia Venezuelana no Apagar das Luzes

Capa Original do Leviatã de Hobbes
Neste hiato entre o Natal e o Ano Novo, as coisas seguem seu ritmo próprio, é como se nada mais devesse acontecer - e o que acontece, mais parece que o faz por inércia, quase pedindo desculpas por ter acontecido. Um político profissional - sobretudo daqueles que exercem mando relevante no Estado - é suficientemente hábil para se aproveitar deste caro instante, imediatamente anterior ao apagar das luzes, para usar-se da dispersão geral para tomar decisões há muito planejadas, mas que demandam um certo piscar de olhos da multidão. No Brasil nem é preciso fazer longas digressões históricas, basta lembrar da recente votação na qual os parlamentares aumentaram os seus próprios vencimentos e os do Executivo, seguindo o efeito dominó do aumento dos rendimentos dos ministros do STF - o último movimento normalmente passa desapercebido pela opinião que é publicada, que se esquece do fato de é aquele o "teto constitucional". Nem é preciso entrar nos méritos ou deméritos do aumento, mas o fato é que ele é impopular, logo, há de se aproveitar uma boa oportunidade para aprova-lo. 

Na Venezuela, aparentemente, existe uma prática parecida e este profícuo período do ano foi utilizado para passar a sua nova Lei de Mídia - linkada aqui na íntegra -, que traz pontos polêmicos acerca da regulação da Internet. Para quem gosta de Direito Público, é um prato cheio: Colocar nas mãos da Administração a regulação da Internet - como já estavam a televisão e o rádio -, misturando boas medidas - como preocupação com os deficientes auditivos e reconhecendo de um modo geral a hiposuficiência dos usuários em relação aos meios de comunicação - com itens curiosos como a promoção da propaganda nacional(ista) e a vedação de coisas que façam "apologia ao crime" ou promovam, façam ou incitem medidas que ameacem alterar a Ordem. Isso, no entanto, é uma questão que transcende a questão venezuelana; como gente muito mais competente do que eu, como o Alexandre Nodari e o Murilo Corrêalembra, existem certas  peculiaridades na linguagem jurídica. O Murilo, aliás, tem um parágrafo primoroso sobre o assunto que  dialoga bem com o caso venezuelano:

Uma das hipóteses-mestras de minha dissertação [Do mesmo à ruptura: ensaios... (2009)] buscava avaliar se, e até que ponto, as teorias contemporâneas do direito (do neoconstitucionalismo à teoria do direito como interpretação, ou argumentação racional) serviriam como passagens móveis entre um esquema jurídico-disciplinar e a implantação do estado de exceção como paradigma de governo; nesse paradigma, o ponto de gravidade não é a ausência de normas, mas, grosso modo, uma indeterminação entre normas e fatos que gera uma zona de anomia, mantendo a totalidade do ordenamento jurídico vigente, mas suspenso, sem aplicação.

Não, a Exceção não depende exclusivamente da enunciação de uma determinação de suspensão da Ordem vigente - e consequente supressão de direitos -, pois ela pode ser operada pela própria indeterminação entre o que diz a norma - isto é, o tipo - e os fatos. Em nosso sistema, quem decide isso é o Leviatã: O poder soberano instaura a exceção na zona escura na qual ocorre o chamado processo de subsunção. Em temos mais concretos, acontece algo e esse acontecer não é entendido como fato jurídico por obra da natureza, tampouco ele é assim enquadrado na hipótese prevista em certo dispositivo legal, é o poder político instituído que realiza essa operação. A alegoria burguesa da segurança na lei - o legalismo - é um fantasma ou melhor, o rei está nu. Um belo exemplo disso é o tipo penal da apologia ao crime, prevista no direito venezuelano e na brasileiro também: Ao mesmo tempo em que as constituições modernas promovem a liberdade de expressão, existe um tipo no qual você é punido por ter discurso em favor de uma "conduta criminosa" - isto é, uma conduta que ofendeu um bem tutelado pelo Estado.

O paradigma da apologia ao crime consiste numa dobra desse esquema: Ele depende da consideração do juízo de certa autoridade de que uma conduta foi criminosa e, também, de que outra conduta subsequente consistiu em apoio ou incentivo à primeira. O episódio mais contundente que concerne a esse item foi a proibição no ano passado da Marcha da Maconha no Brasil, ainda que aquele caso pudesse ser facilmente desmontado logicamente, foi sob os auspícios da apologia ao crime que o Ministério Público se moveu para proibir a realização da marcha em diversos estados, o que foi perfeitamente exitoso em vários lugares graças às decisões judiciais no mesmo sentido - e, no fim das contas, são as sentenças que dizem o que é o direito nesse nosso mundinho, a despeito da argumentação de cidadãos enxeridos

É isso que está em jogo na Venezuela, nada que tenha a ver com qualquer particular degeneração da "esquerda", tampouco com qualquer arroubo de totalitarismo, é a própria marcha incessante do Estado de Direito que está em curso ali, visando regular a vida dos cidadãos para dentro do espaço (virtual) no qual eles ainda encontram uma liberdade que há muito (e por toda parte) já não é mais possível experimentar fisicamente - nada muito diferente dos EUA e sua busca cruenta por Julian "wanted" Assange. Aqui, a questão é o projeto iluminista, sua racionalidade abstrata e seu fetiche da governança - no qual está perfeitamente inserido o bolivarianismo em seus vícios e virtudes - que se insurge contra nós. 




Nenhum comentário:

Postar um comentário