domingo, 26 de julho de 2009

A Crise Tecnológica Russa

Nos fins dos anos 50, a União Soviética viveu o ápice do seu desenvolvimento tecnológico, seja por ter largado na frente na corrida espacial ou por estar desenvolvendo uma tecnologia bélica de porte - sendo que os dois campos se colaboravam entre si. Era qualquer coisa espetacular em se tratando de um país que se formara há pouco mais de trinta anos em condições terríveis: Sua economia fora arruinada pela guerra, ele estava cercado pelas potências ocidentais e tinha problemas políticos na medida em que a nova organização do Estado permanecia uma incógnita.

Obviamente, a relativa estabilidade dos anos 50 não tinha sido conquistada sem menos sofrimento: Por detrás disso, havia os expurgos dos anos 30 quando Stalin varreu a influência trotskista das fileiras da burocracia e do exército vermelho assim como eliminou boa parte dos intelectuais que não aceitaram ser enquadrados. Sua vitória se consolida com Constituição Soviética de 1936, onde as concepções marxistas do Direito e do Estado elaboradas por um Pachukanis caem por terra em prol do normativismo de um Vynchinsky, um dos maiores responsáveis pelo esboço das bases jurídicas do Stalinismo - cá entre nós, a prostituição intelectual dos juristas e sua relação com os regimes autoritários merecia um livro.

Temos ainda o agravante da Segunda Guerra Mundial e o massacre de 20 milhões de russos. Sem embargo, um russo nascido em 1900 que tenha sobrevivido a Primeira Guerra Mundial, a Guerra Civil, aos expurgos stalinistas e depois a Segunda Guerra Mundial, certamente viu mais sangue do que um ser humano mereceu ver.

Pois bem, chegamos aos 50, onde os soviéticos produziam armas nucleares, foguetes, satélites artificias e estavam às portas de produzirem naves espaciais. O cidadão soviético médio não tinha muitos bens de consumo e eles tinham qualidade questionável, no entanto, o país era autosuficiente na sua produção - que, ainda assim, crescia em quantidade e em qualidade. Que veio a acontecer então para gerar a estagnação tecnológica do país?

Em primeiro lugar, apontaria a deficiência do sistema político em realizar aquilo que se pretendia - como já tratado aqui -, a tecnologia produzida deveria focar na construção do Comunismo, livrando os homens da escravidão do trabalho - agrícola e industrial -, transformando-os em administradores de um sistema pós-industrial. Lenin, acertadamente, previu que a divisão do trabalho não permitiria que a Rússia superasse o Capitalismo dentro dele mesmo e que era possível, dentro de uma ditadura revolucionária, produzir uma expansão capitalista administrada pelo povo como forma de contornar isso. Lenin estava certo, mas não desenvolveu uma teoria do Estado suficiente para abarcar esse processo e depois de sua morte restou um vácuo que resultou no descalabro stalinista.

Enquanto os americanos dentro da esfera capitalista produziam tecnologia bélica e espacial de ponta, mas repassavam isso para os demais campos da indústria de bens de consumo e de capital numa ação extremamente coordenada, os soviéticos esbarravam na disfuncionalidade da burocracia em realizar esse processo; a URSS não acaba em 91, mas sim quando uma conspiração da burocracia militar derruba Khruchiov por conta de seu bem-intencionado plano de investir pesado na expansão da fronteira agrícola soviética por meio de incremento tecnológico. O ciclo do desenvolvimento não se completava porque a tecnologia bélica e espacial não era reaproveitada pelos outros ramos da economia - ou o era, de maneira incipiente.

Do ponto de vista educacional, a URSS sempre investiu pesado na ciência e tecnologia em detrimento das humanidades. Isso não era ocasional, nem teve impactos pequenos: Partia-se da premissa que a questão da Teoria do Estado e do Direito já estava pronta e acabada, sendo que a questão econômica estava destinada a ser resolvida técnica e matematicamente. A falta de liberdade de expressão também não era um cenário convidativo para a discussão política. Enfim, desconsiderou-se uma premissa óbvia que a necessidade de teorizar a Política é perene - e que o ensino das humanidades é o que vai gerar os teóricos para essa área. Evidentemente, isso decorre do dogmatismo do qual se revestia o Partido Bolchevique - o que sempre é mortal para a esquerda - e depois foi acirrado às últimos consequências pela visão Taylorista do Stalinismo.

Nos quase oitenta anos de duração da União Soviética, o país foi muito pouco pensado politicamente. Dos anos trinta em diante, ele foi, no máximo, debatido nos gabinetes fechados por meia dúzia de burocratas, enquanto a conjuntura política mundial se alterava continuamente assim como as necessidades internas e externas do país. Veja só que os países capitalistas, há muito, aprenderam que é importante investir no ensino de humanidades e que haja certa liberdade nisso, inclusive na Academia; o conhecimento perigoso pode ser fagocitado e o risco fica por conta dos movimentos sociais que ele poder gerar, o que tem de ser neutralizado por outros meios, claro. A relação entre a Academia e o Capitalimo sempre será problemática e contraditória, mas isso também vale em relação a qualquer sistema de organização política e econômica - em menor grau, claro -; os líderes soviéticos, no entanto, não souberam se utilizar disso como a História prova.

Nova cena: Anos 90 e a hecatombe promovida por Yeltsin. Desmonte das redes de proteção social e de emprego, privatizações fraudulentas - mesmo pela perspectiva liberal -, corrupção e criminalidade nas ruas. Saúde e Educação Pública entram em colapso qualitativo, a expectativa de vida desaba. Os ex-burocratas se tornam senhores do novo - e selvagem - capitalismo nascente e disputam o poder numa batalha campal. O país assiste a tudo isso atônito e a ciência e a tecnologia do país se encotram estagnadas. A aliança dos oligarcas de Moscou e de São Petersburgo em prol da salvação nacional gera Putin.

Com o dinheiro do petróleo e o redesenho da administração do país, encabeçada por Putin e a inteligentsia da Faculdade de Direito de São Petersburgo. Recomeça a reconstrução de alguns setores estratégicos do país e a paralisia mental da era Yeltsin é varrida por um impulso progressista. Ainda assim, o que se vê não é suficiente. Vem a Crise Mundial e os defeitos e incongruências vêm à tona. Num post do blog de José Milhazes, encontramos:

"Vladimir Visotski, comandante-chefe da Marinha da Rússia,reconheceu, numa entrevista à agência Ria-Novosti, que os fracassos nos testes do míssil balístico intercontinental 'Bulava' se devem 'à crise no desenvolvimento das tecnologias na Rússia'. Seis dos onze ensaios, nomeadamente os últimos dois, falharam."Realmente, hoje existe uma crise nas áreas tecnológicas. O 'Bulava' é uma prova fundamental que provará se a Rússia irá superar essa crise", acrescentou o almirante."



José Milhazes, para quem não sabe, é um jornalista português que reside na Rússia por volta de três décadas, foi por conta de sua militância comunista - ora, abandonada -, estudou História lá - em Lomonossov - e é correspondente da Agência Lusa naquele país. Pode se criticar negativamente certas posições políticas de Milhazes, as que teve e as que tem hoje, mas não dizer que ele não tem informações ali de dentro. É apenas um ponto de vista possível, mas é um ponto de vista de quem está lá dentro há tempos.

O que temos, é que o modelo que o Estado Russo tem tentado levar adiante desde sua refundação nos anos 90 - seja pelo Consensualismo de Washington de Yeltsin ou pelo desenvolvimentismo putinista - fracassou. Sobe Yeltsin, nem tecerei mais comentários. Sobre Putin/Medvedev, o que temos é a permanente incompetência na reutilização das tecnologias espaciais e bélicas para demais setores do mercado interno e uma certa inocência no que envolve a ideia de que a mera comercialização de armamento no mercado externo vá financiar as demandas de defesa da Federação Russa. É um processo muito mais complexo do que isso que envolve desde a reconstrução do sistema educacional para se reformular a política até um plano estratégico para usar os setores de ponta como propulsores do mercado interno. Tudo isso, claro, esbarra nas limitações intelectuais e até morais das forças políticas que dominam a cena da Rússia contemporânea.

2 comentários:

  1. Hugo,

    Ótimo post, muito rico em temas para discussões, em informações normalmente não disponíveis nos meios nativos e em análises precisas.

    Observaria apenas que Marx poderia ser citado - afinal, a tese desenvolvida por Lenin em relação à sociedade soviética é, na verdade, a adaptação do que o primeiro sugerira em tese e de forma genérica. Mas é um detalhe insignificante, que só um velho marxista como eu prestaria atenção.

    Embora eu entenda perfeitamente o que você quis dizer - e porque preferiu enfatizar isso -, penso que a questão do ensino das humanidades poderia ser um pouco matizada. É evidente que, aleijadas de seu aspecto crítico, as humanidades tornam-se esteréis - e isso é o que importa. Mas isso não significa que alguns diferenciais da educação soviética devam ser necessariamente negligenciados, como o fato de que nas áreas musicais, linguísticas e gráficas o ensino soviético era superior ao oferecido em boa parte do mundo desenvolvido, ao menos até a débâcle dos anos 90 (mas mesmo depois disso conheci jovens russos com impressionante adestramento musical).

    Achei brilhante sua análise do (já longo)período Yeltsin-Putin. É de estarrecer a trajetória histórica da Rússia e o ponto em que ora se encontra.

    Um abraço,
    Maurício.

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  2. Maurício,

    Obrigado, como já comentei aqui que em relação à Rússia, a mídia nativa ainda faz uma cobertura à la Guerra Fria da Rússia até porquê vive de chupinhar notícias da agências internacionais - aliás, mesmo na Academia o debate sobre Rússia é estéril porque não convém à direita demonizar o que foi a experiência soviética e na esquerda, insisto, há um silêncio ensurdecedor quanto ao período pós-Lenin quando, na verdade, nosso papel seria o de fazer uma crítica qualificada.

    Na questão da teoria leninista, você tem razão, acabei deixando a visão marxista apenas pressuposta e isso não é um detalhe insignificante. Enquanto Marx apontava que o socialismo aconteceria nos países em que o desenvolvimento do capitalismo era mais avançado e a classe proletária já estava mais organizada, Lenin pretendeu levar adiante o socialismo num nação capitalista ainda pouco desenvolvida usando mecanismos de acumulação de capital controlados pela própria ditadura revolucionária do proletariado que fariam esse meio-campo - dada a impossibilidade da Rússia se desenvolver por conta da sua posição a qual estava relegada na divisão internacional do trabalho.

    Sobre a questão da acriticidade das humanidades, de fato, eu acabei não enfocando por essa perspectiva, mas a ideia é essa daí. A ciência e a tecnologia eram prioridades e o ensino das humanidades era praticamente uma teologia feita em relação a textos científicos que foram dogmatizados - por conta da concepção ideológica do regime.

    Claro, quando me referia a elas, fazia referência às áreas que tinham conexão com a reflexão política em si e não áreas artísticas, afinal, elas podem ser desautonimizadas da mensagem ideológica que passam dependendo da natureza e da eficiência do regime, ou seja, como acontecia na URSS e praticamente acontece hoje, onde a arte é engolida pelo sistema e basicamente serve como conteúdo formal para a massificação de ideias que nem sempre são fruto da reflexão do artista - nesse aspecto, fica o histórico de censura dos cineastas e compositores clássicos soviéticos, que ficaram limitados à possibilidade de fazer uma resistência silenciosa, sem falar nos casos em que o artista se presta a ser mero reprodutor do que o sistema produz e perde sua própria condição.

    A nova Rússia que nasce em 91, com direito a retirarem a bandeira do Tzar do baú e tudo mais, deve ser dividida em duas; é bom tomar cuidado em não falar em período Yeltsin-Putin porque ele não existe; são duas fases distintas, unidas apenas por um nexo de causalidade.

    abraços

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