domingo, 5 de abril de 2009

A Crise e a Rússia


A Rússia, mais do que qualquer um dos outros BRIC's, foi afetada por essa crise mundial, para ser mais exato, ela foi atropelada por ela. A situação até o terceiro trimestre do ano passado era de um país que crescia há quase nove anos a taxas de aproximadamente 7%, possuia reservas em dólar consideráveis além de petroléo e gás - produtos que batiam preços recorde no mercado internacional - e que se não chegava ao protagonismo mundial de outrora, ao menos, voltava a fazer frente aos grandes do continente europeu. Não olvidando ainda que depois de anos de vexaminosas operações militares, seja contra afegãos ou chechenos, o país retomou o controle estratégico do Cáucaso e ainda deu um baile militar na Geórgia no caso da Abkhazia e da Ossétia do Sul. De repente, não mais do que repente, as coisas começaram a dar errado e a queda em espiral dos preços dos hidrocarbonetos revelou incongruências e fragilidades da economia daquele país. A que se deveria isso?


Para tanto, resta-me começar do começo. Basicamente, a URSS que nasceu em 1924 era um país agrário com algumas indústrias concentradas em alguns pólos específicos, mas, sobretudo, era um país arrasado pela Primeira Guerra Mundial e pelo processo revolucionário. A União Soviética não tinha nada, não produzia nada, era um Império Russo reduzido a um oitavo do PIB e sem nenhum poder sobre a Polônia. Curiosamente, poucos anos mais tarde, ela mandava cachorros, homens e satélites artificiais para o espaço, como explicar isso?

O fato é que o modelo de capitalismo in vitro que Stalin criou já no fim dos anos 20, era tão desumano quanto eficiente do ponto de vista material: O Estado enquanto grande empresa - e por meio de uma política violentamente autoritária - se apoderou da mais-valia produzida às custas da exploração sistetemática de trabalhadores rurais e urbanos que, por sua vez, era destinada à produção tecnológica, ao desenvolvimento extensivo da indústria - em especial para a bélica e aeroespacial.

Politicamente o país estava em frangalhos nos anos 50, não esquecendo o morticínio de 1914 até 24, nos anos 30 a ditadura stalinista varreu do mapa muitas das melhores mentes daquele país e, para completar a o desastre, a Segunda Guerra se encarregou de terminar o serviço deixando um rastro não menos cruento. Não havia, portanto, qualquer canal democrático capaz de canalisar essa produção tecnológica para o uso comunitário; o parque industrial russo voltava a sua carga para a indústria bélica e para indústria aeroespacial para agradar burocratas militares e exaltar o espiríto patriótico. Enquanto isso, o país não conseguia resolver os problemas de segurança alimentar e não fabricava bens de consumo razoáveis - aliás, Nikita foi defenestrado justamente pela oposição da burocracia militar aos seus planos de expansão da fronteira agrícola.

O país, claro, entrou em um período de desaquecimento do crescimento já nos anos 60, que se agravou nos anos 70 e se tornou em colapso nos anos 80, diante da debilidade de um Gorbatchiov em realizar as reformas econômicas necessárias ou ao menos manter o controle do país - leia-se, no entanto, que queda no PIB mesmo só veio a se registrar no período de Gorbatchiov. Enquanto Gorby fracassa, figuras bizarras como Boris Yeltsin travam uma luta pouco anamidora nos bastidores que resulta na vitória do segunda e na quarta hecatombe que aquele país viveu no século 20º: A queda do socialismo e a fragmentação da URSS.

Discuta-se sob o ângulo ou perspectiva que se quiser, mas não há como pensar que as reformas produzidas por Yeltsin possam ter sido positivas: Ele permitiu o loteamento das estatais soviéticas nas mãos de jovens burocratas que tão logo se tornaram bilionários - e com isso, houve uma catástrofe humanitária, haja visto que os sistemas de saúde e previdência soviética estavam atrelados às estatais -, defendeu a Democracia tão somente quando esta lhe foi favorável, quando não, agiu stalinisticamente e mandou bala usando as Forças Armadas - que lhe foram fiéis do início ao fim do governo, entre outras tantas coisas.

Diante do desastre da era Yeltsin, os oligarcas forjados durante seu período no poder precisavam elaborar uma solução que salvasse o país que eles tanto lutaram para rapinar, mas cujo produto do roubo viraria ouro de tolo caso não achassem uma solução capaz para a governança; é aí que surge uma aproximação entre o grupo de Moscou e o de São Petersburgo, que culmina com a ascenção ao poder do grupo de reformistas vindo da Faculdade de Direito de São Petersburgo - antiga Leningrado -, de onde vieram Putin e mais recentemente Medvedev.

O governo Putin foi marcado pela volta não somente de algum tipo de projeto de nação como da construção de uma nova narrativa nacional baseada nas glórias do período soviético sob uma perspectiva nacionalista e também de uma revalorização do período Tzarista; também há de se ressaltar o redesenho da estrutura militar do país, pelo uso da alta do preço dos hidrocarbonetos como forma de reconstruir a Rússia e, sobretudo, pela maneira como ele criou uma espécie de modus vivendi para a oligarquia russa, pondo de certa forma ordem na casa e - defenestrando figuras Berezovsky e Khodorkovsky. Por outro lado, seu governo marcou um recuo nos avanços das liberdades individuais e coletivas bem como deu no surgimento de algo nefasto, que eu diria ser a prima-irmã da Democracia Relativa de Geisel: A Democracia Controlada.

Curiosamente, após dois mandatos presidenciais, ninguém quis endossar um terceiro mandato para Putin sob o risco de sofrer críticas do Ocidente, lá colocaram o jovem Dmitri Anatolievich Medvedev, Professor de Direito Civil de São Petersburgo, intelectual, uma figura sem muito carisma, mas com alguma competência administrativa - alguém que seria visto como razoável por aqueles que votaram em Alckimin na última eleição presidencial. Putin foi honrosamente eleito deputado como cabeça de lista de seu estranho partido, o Rússia Unida e foi referendado como Primeiro-Ministro. Enfim, a história da águia bifronte, nunca fez tanto sentido.

Das demais forças políticas russas, temos um cada vez mais insignificante e caricatural Partido Comunista da Federação Russa liderado pelo tosco Guennadi Ziuganov, os Nacionalistas liderados pelo folclórico Vladimir Zhirinovsky - uma espécie da Afanásio Jazadi russo - e coisas como o Partido Nacional-Bolchevique de Eduard Limonov - será que essa gente nunca leu o Manifesto do Partido Comunista para entender que ser nacionalista e comunista é contraditório?

Portanto, é nesse ambiente que a Rússia foi acertada bem no meio pelo trem-bala de Crise; entre os erros que foram cometidos estão a não construção de um sistema financeiro nacional sólido ao mesmo tempo em que o orçamento nacional foi baseado numa perspectiva onde o preço dos hidrocarbonetos se manteria alto. Ledo engano. Por ora, o impacto da Crise na Rússia seria o seguinte: Uma queda do PIB entre 4,5% e 5,6%, o que certamente gerará tensões políticas como não se via há muito tempo naquele país. Mais que isso, serão tensões que podem provocar mudanças muito profundas mesmo, mas eu não sei se elas serão para melhor...

4 comentários:

  1. Hugo,

    Excelente artigo sobre a Rússia!

    Lendo seu post fui lembrando o quanto a Rússia _ URSS _ , era uma potência apenas na aparência. O mito do país forte e dinâmico surgido após a Crise de 29, da qual a URSS saiu praticamente ilesa, e que tentou preservar a duras penas durante, e logo após, a 2ª Guerra Mundial, as custas da exploração dos seus trabalhadores e do sucateamento da indústria, não resistiu a corrida armamentista disputada com os EUA e o Império desmoronou como um castelo de areia sob a maré alta.

    O mal da Rússia continua sendo a forma como seus governantes superdimensionam o peso que seu país tem no mundo. Trata-se de um país com imensas possibilidades, mas que tenta dar passos maiores que as próprias pernas. Parece que não existe uma estratégia de desenvolvimento para o futuro, mas um desejo irresistível de reviver o Império lançando mão de todos os recursos disponíveis no presente. Se algo dá errado, como aconteceu com a crise atual, esses recursos tornam-se insuficientes e não há nada a mão que possa substituí-lo com a rapidez necessária.

    Outra característica russa que a distingue do restante da Europa _embora isso seja bastante relativo _ é a tendência do país a governos autoritários. Do Czarismo à URSS, e agora sob Putin, a Rússia nunca pareceu disposta a se tornar uma democracia nos moldes ocidentais. Talvez seja um dado cultural, talvez seja apenas um condicionamento histórico que pode mudar, mas a Rússia parece cada vez mais distante da Europa no que diz respeito ao seu sistema político.

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  2. Grande Eduardo,

    Muito obrigado, aliás, esse post deveria ter saído já há alguns dias, mas me demandou um certo tempo de pesquisa.

    A ilusão que sempre houve em relação a URSS, particularmente no Brasil, se deveu, à esquerda, a tentativa desesperada de apresentar um modelo prático que servisse de alternativa ao modelo pára-colonial que tínhamos - e ainda temos em algum grau -, daí um certa tomada de licença poética na sua descrição. Doutro lado, a direita brasileira nunca procurou desmoralizar esse mito, muito pelo contrário, sempre o endossou para, através do álibi de um fobia anti-comunista e anti-russa, conseguir justificar atos bizarros como o próprio golpe de 64.

    Sobre a corrida armamentista, não creio que ela em si tenha destruído a URSS, mas sim o fato da não incorporação de tecnologia militar - e espacial - para a indústria de bens de consumo para fazer a roda da economia gerar e garantir um reimpulso para os investimentos, o que, sem dúvida, foi fruto da ausência de Democracia.

    Sobre os líderes russos, há uma certa ilusão de grandeza que remonta aos tempos da lenda da Terceira Roma que, inclusive, tem muito a ver com essa exuberante águia bifronte que ilustra esse post.

    No que toca a cultura de despotismo da Rússia, é preciso ponderar como a própria Rússia surgiu; não se esqueça que esse povo que denominamos como "russos" são, na verdade, eslavos que migraram para aquela enorme região lá pela alta idade média fugindo dos germânicos e que além do clima rigoroso ainda se depararam com povos hostis - desde de povos urálicos, pérsicos, mongólicos e até vikings que iam fazer expedições por aquelas paragens.

    Quando os Rus - termo cuja origem é controversa, mas aparentemente remonta a "rootsi", ou seja, espécie de acampamentos de campanha dos vikings - já estavam mais ou menos estabelecidos, a Horda de Ouro dominou aquela região e manteve-se no poder por mais de dois séculos no fim da Idade Média.

    Os mongóis, diga-se, só deixaram de ser problema mesmo com o Ivan, o Terrível no século 16º - e olhe lá. Depois disso, ainda tivemos o advento de Napoleão e mais tarde as duas Guerras Mundiais que violentaram aquele país de maneira ímpar.

    Esses fatores e mais alguns outros criaram uma cultura belicista, admiradora de líderes fortes e de certa maneira- e justificadamente - desconfiada com o que vem "de fora". Pode parecer um país paranóico, mas é difícil elencar uma época em que os russos de alguma maneira não estiveram cercados por potências estrangeiras ou povos hostis e isso deixou sim uma marca muito forte naquele povo. Ainda que haja um desejo de Democracia e de liberdade muito intensos, viver num país onde a temperatura chega a uns 30º negativos durante o inverno e ainda é cercado por poderosos inimigos, acaba sendo um estímulo a figuras que vendam a imagem de "líderes fortes" - ainda que Putin esteja mais pra Vargas do que pra Stalin...

    abraços

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  3. Oi Hugo.

    Muito boa sua análise... os 'especialistas' de plantão geralmente ocultam todo o passado histórico de um povo ao descrevê-lo, descambando para o maniqueísmo mais abjeto. Especialmente em relação à Rússia - os ecos da Guerra Fria insistem em não morrer.

    Adiciono apenas que a industrialização forçada (gostei do termo 'capitalismo in vitro' - pouca gente sabe que, fora seu grande ídolo Ivan o Terrível, Stalin também admirava os métodos de Taylor e Ford) do período stalinista foi fundamental na derrota do exército nazista.

    Um grande abraço!

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  4. Olá Luis Henrique,

    Valeu, cara. Aliás, é isso mesmo: Análises sobre a Rússia ainda são incrivelmente poluídas pela propaganda da Guerra Fria; veja só o caso da Guerra contra a Geórgia, não faltaram esquerdistas exaltando a vitória russa por um certo saudosismo de uma URSS que nunca existiu e direitistas morrendo de raiva pelos mesmos motivos...

    Sim, sem dúvida, o processo radical de industrialização no período stalinista foi importante para a vitória contra os nazistas, ainda que os processos de Moscou e as perseguições contra muitos dos melhores quadros revolucionários geraram um déficit de material humano que tornou a invasão possível - não se esqueça que gênios como um Koroliov (o pai do programa espacial soviético) ou um Tupolev (um dos artificies da indústria aeroespacial) foram jogados em gulags nos anos 30 e mesmo que tenham escapado, fico pensando em quantos homens iguais ou melhores do que eles foram mortos e varridos da história.

    Uma União Soviética comandada por Trotsky teria conseguido rechaçar os nazistas com mais facilidade e ainda se industrializar melhor. De Stalin contra os nazistas fica a lembrança de sua recuperação diante das próprias lambanças dos anos 30 quando passou a perna nos alemães com o pacto Ribentropp-Molotov - fazendo-os crer na ingenuidade soviética enquanto ele ganhava tempo para transferir o parque industrial do oeste para o Cáucaso, além, claro, de sua liderança no contra-ataque.

    Como você bem lembrou, Stalin era mesmo fã do taylorismo, o que fez - como acentua com maestria Noam Chomsky - a União Soviética criar um modelo produtivo que focava mais o controle dos trabalhadores do que a eficiência produtiva; como os trabalhadores soviéticos não tinham nem ao menos os canais precários de seus congêneres ocidentais em suas democracias burguesas, caminhou-se rapidamente para um processo de putrefação da estrutura industrial daquele país.

    Enfim, a Rússia mesmo com todas as suas contradições e tragédias é um país formidável que suscita uma série de debates interessantíssimos.

    abraços;-)

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